ACORDAR ENTRE RUGAS



Acordou. Sempre acordava ainda. Sorriu. Ainda acordava. Estava no lucro. As dores pesando nas costas. Feliz de acordar mais uma vez. Acordar neste novo mundo era uma vitória. Mundo de dores ardidas, de imagens tristes.
No chuveiro escorreu em água e sabão as angústias da noite, pesadelos novos deveriam ter espaço. Os antigos, anteriores iam pro ralo. Normalizar o medo. Água e sabão.
Secar o corpo antigo. Ruga por ruga. Trabalho cansativo. Exaustivo. Como secar os sulcos que o tempo e a vida riscava na carne sua? E os rios? Sorria. Corpo sem rios era puro deserto. A pele dobrada e árida precisava de rios.
Sentado no vaso fumou. Fumaça indo. Se esvaindo. Seria bom assim. Como a fumaça ir. Lenta. Calma. Subindo. Sumindo. O corpo nu e velho e molhado. Levantou. A vida chamava. Verdade? Sorriu. Não estava ouvindo nada. Mas ia do mesmo jeito. Sempre ia. Na cozinha a jarra elétrica. O café. Preto e forte pra acordar. Atiçar o cérebro. O rádio ligado. Música embalando o silêncio. Lenta. Lento sentou e bebeu o café. Um pão. Abrir a janela. O dia ainda envergonhado não era luz.
Na porta que se abre o cachorro. Tão velho quanto. Amigo e cansado. Uma cauda abanando, um passar de mão na cabeça. Olhos que se veem um no outro. A vida chama.
O cão levanta. Espreguiçando o corpo cansado e magro. Ele sorri. Era bom acordar. Ainda. Ainda espreguiçar o corpo. Mesmo neste novo mundo.
O som da rua começava a acordar. A rua começava a sair de seu torpor. Som de carro. Algumas vozes distantes. Galinhas. Cães. Passarinhos. Todos amalgamados em um murmúrio de rebeldia que se erguia da rua.
Começava o sol. Pintada a rua de luz. O dia parecia mais feliz. Pela janela um facho do sol. Pedaço de calor que entrava e brilhava. Ficava ali. Em pé. Longos minutos. Alimentando-se de sol. Bom que era. Até que ardia e saia. Sentava então na poltrona de ficar sozinho.
Era um. Dois com o cão e só. Os dois eram. Antigos para aquele mundo. Mas acordavam sempre. Espreguiçavam-se sempre. Às vezes sorriam. Chorar não choravam. Nem lamentavam. Corpos duros e antigos de viver a vida no limite permitido. Entre estar e não estar ali. Na vida.
Viventes. Sobre. A tênue linha ainda resistia. Agarravam-se. Equilíbrio. Desafio. E era normal viver. Mesmo que soubesse das dores e horrores. A cabeça era boa. Pensava, analisava. Mais rápida que o corpo. E era o que trazia mais dor. Quanto mais pensava mais sentia dor. Uma dor vetusta e profunda. Preferia não pensar. Fazer o corpo cansar no dia. Varria o pátio. Lavava a louça. Arrumava uma porta. Preparava a comida. Assistia a televisão. Ouvia o rádio. Afagava o pelo antigo e ralo do Cão. Era o nome. Cão era o nome do cachorro.
O dele. O nome. Ainda lembrava. Mas era um nome morto. Não falado, não proferido. Sem amigos. Ninguém dizia. Os que falavam chamavam de velho. Perdera o nome. Escorreu com o tempo. Afinando, definhando com o corpo. Escorrido no banheiro com água e sabão. Os poucos que lhe falavam era Velho. O velho. E no espelho entre as rugas sorria. E o velho acordava, levantava e vivia. Mas perdera o nome próprio nessas andanças.
Mas tava lá. No meio dos documentos. Em um outro rosto mais novo, mais forte. Outro. O da foto era outro. Sorria. Mas nem tinha saudade daquela outro. Engraçado isso. Pensava. Seria um cansaço? Um desânimo? Todo mundo quer ser outro. Viver outra vida. E pra ele bastava as rugas do espelho e o Cão.
No pátio, sentou na cadeira da árvore. Sombra e ar. O cão deitado ao lado. A música do rádio embalando um silêncio que já não existia.
Era bom acordar ainda. Mesmo sendo um estranho completo. Mesmo sendo tantas rugas. Mesmo sendo carne dobrada sobre carne e todas as dores do mundo.
Afagou o Cão. Um olho cansado o fitou.
“É bom acordar, ainda. Né Cão?”
O rabo do animal balançou de um lado para o outro. Uma vez só. E a música do rádio fluiu por todos os poros da existência, diluindo imagens e formas, misturando tudo numa vibração, numa onda imperceptível de tempo que se ia.

Sobre Ronie Von Rosa Martins 25 Artigos
É mestre em Educação pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (2012), especialista em Literatura Contemporânea Brasileira pela Universidade Federal de Pelotas(2002) e também especialista em Linguagens Verbais e visuais e suas Tecnologias pelo IFSul-Pel.(2008). Atua como professor na rede Estadual da cidade de Cerrito e na rede municipal da cidade de Pedro Osório, Rio grande do Sul. Tem experiência nas áreas de Literatura e Formação de professores, com ênfase na articulação entre Literatura e filosofias da diferença.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*