Caravaggio: Pintura em carne e sangue

Caravaggio: Pintura em carne e sangue

Por Alex Sandro Carrari 

Baco – Caravaggio

Se eu fosse classificar a pintura de Michelangelo Merisi da Caravaggio seria “pintura que tem corpo” ou “pintura de contato”. Caravaggio produziu a pintura fisicamente mais intensa da cristandade, segundo o crítico inglês Simon Schama, autor do livro O Poder da Arte. Com ele estou de pleno acordo. Além da intensidade de sua pintura, outro fato para se saber sobre este pintor é que ele matou uma pessoa.

Sua postura pedante e turbulenta não poupava muita gente, inclusive artistas de seu tempo, de investidas, zombarias públicas e em várias ocasiões, violentas agressões, o que lhe valeu incontáveis estadias em calabouços e cadeias, bem dizer sua segunda casa. Um dos poucos que respeitava como pintor, talvez o único, fosse seu contemporâneo e também genial, Aniballe Carraci, e um pouco de respeito mantinha também por seu velho mestre Giuseppe Cesari conhecido como “Cavalier d’Arpino”.

Judith decapitando Holofernes – Caravaggio,

Entre 1592, quando chegou a Roma com apenas 21 anos e 1606, ano em que apressadamente foge da justiça, o cara transformou de forma definitiva a arte cristã como nenhum outro desde seu homônimo até então imbatível, Michelangelo Buonarroti. São desse período Jovem Mordido por um Lagarto (1595), Baco Doente (1593-4), Os Trapaceiros (1596), Os Músicos (1595-6), Cabeça de Medusa (1598-9), Santa Catarina de Alexandria (1598), A Vocação de São Mateus (1598-1601), O Martírio de São Mateus (1599-1600), A Crucificação de São Pedro (1600), A Conversão de Paulo (1601), Amor Vincit Omnia (1598-9), O Incrédulo Tomé (1602-3), Madona de Loreto (1604-5), A Morte da Virgem (1605-6).

Enquanto que os pós-renascentistas ao encontrar alguma dificuldade em ralação a ocupação dos espaços do quadro recorriam à ilusão da perspectiva – que é a grande façanha da pintura renascentista –, ele jogava seus personagens para o primeiro plano, causando uma reação física no observador. A intensa luz lançada sobre as figuras revela a escuridão sufocante ao redor. Luz que revela escuridão. Uma escuridão que rompe com a cena, extrapola a moldura, causando uma sensação de proximidade tão íntima que a composição parece invadir o ambiente de quem a observa. Era isso mesmo que este gênio criminoso pretendia. Invadir nosso espaço. Fazer-nos sentir o cheiro do sangue do Batista que escorre eternamente para os frisos do chão do calabouço romano. Era isso que ele pretendia, que nos sentíssemos tão partícipes da ceia em Emaús que nos esquivássemos do movimento do braço estendido do Cristo dando graças pelo alimento. Caravaggio queria que a sensação do dedo ternamente conduzido pelo Cristo a penetrar a carne aberta de seu lado não fosse unicamente o do pasmado Tomé bíblico, mas do incrédulo que insiste em nos moer a sensibilidade, o incrédulo que em nós habita.

La cène à Emmaus – 1601 – Caravaggio

De sua estada em Nápoles saíram retábulos carregados de uma atmosfera sombria, porém penetrada de misericórdia e benevolência, A flagelação de Cristo (1606-7) e As Sete Obras de Misericórdia (1606-7) são exemplos de sua fonte sempre renovada de genialidade e dramaticidade. Durante um ano em que viveu na Sicília pintou retábulos em que transparece uma inquietação latente e a busca de paz e perdão que pareciam mais distantes à medida que comparava com a proporção sempre crescente de seus pecados. Em Siracusa e Messina pintou O enterro de Santa Lúcia (1608), A adoração dos pastores (1608-9) e A ressurreição de Lázaro (1609), pinturas marcadas por algo incomum em suas obras, a condução da cena para o segundo plano, como se o pintor quisesse levar o observador para o fundo, ao coração de seu drama pessoal.

A pergunta que um devoto não deixa calar é: Como um criminoso, vadio, beberrão, briguento, que andava em companhia de cortesãs e gente de má índole podia produzir obras com tanta emoção religiosa, vivacidade e realismo piedoso? Talvez uma resposta que pode não deixar de ser romântica, mas que faz todo sentido, é que sua arte era uma espécie de confissão e ao mesmo tempo a expressão mais dramática de seu anseio por redenção. Se autorretratando em várias de suas obras seja como Baco, músico, cabeça de Medusa, como um pecador fugitivo e covarde ao fundo da cena do Martírio de São Mateus, ou como o mais aterrador de todos, a cabeça de Golias sustentada pelos cabelos por um Davi sem atrativos, expunha-se em cena, delatando seus pecados ao passo que procurava absolvição. O próprio Schama aponta para a cabeça do ogro filisteu como sendo o autorretrato do mestre pintor, uma espécie – sem os baixos clichês – de arte que reflete a vida e vice-versa. Nesse sentido, Caravaggio é um pintor intimista e porque não, o mais virtuoso precedente do romantismo.

Mary Magdalene in ecstasy – Caravaggio

Um trecho do livro de Schama define o que minha capacidade não alcança: “Por que o pittore celebre se conduzia de modo tão estapafúrdio? E poderia agir de outra maneira? Caravaggio era um todo. A agressividade animal; a desafiadora invasão do espaço corporal; o gosto pelo escândalo sexual e social; a adoção do socialmente nocivo; a descarada autodramatização que o fazia sair da escuridão, num raio de luz violenta, a cair em cima do observador; a arrogante convicção de invulnerabilidade que curiosamente acompanhava a compulsão para se enrascar – tudo isso era o que fazia de Caravaggio o pintor mais necessário e, ao mesmo tempo, mais explosivo, mais incontrolável que Roma e a igreja já haviam tido”.

Cortejado por papas, clérigos e cardeais, recebia certa proteção graças à vista grossa que faziam sobre seus crimes e balburdias por ser o mais cobiçado pintor religioso de Roma.

O ano de 1600 é proclamado pelo papa Clemente VIII o Ano Santo, ano de efervescência religiosa, peregrinações e distribuição de graça em forma de absolvição a pecadores, que como ele, em ocasião normal não alcançaria salvação. Embora estivesse bem instalado no Palazzo Madama sob os cuidados de Francesco Maria Del Monte, cardeal bem relacionado com os Médici, Caravaggio conhecia bem os meandros de Roma com seus 100 mil pobres miseráveis com barrigas vazias, afligidos pela peste, oprimidos pelo peso dos impostos que financiavam as “santas” guerras do papa. Sua familiaridade com pobres, mendigos, prostitutas, ébrios, não se resumia a suas perambulações madrugada à dentro pelos guetos saturados de perversão da Roma seiscentista. Eles eram seus modelos. Referências imbuídas de uma santidade supranatural, incontaminada, como a Sônia de Dostoievski em Crime e Castigo; uma prostituta de interior imaculado. Tal hábito causou por vezes a indignação dos mandantes da santa igreja, pois, como retratar um personagem santo como São Pedro, a Virgem, a Madona de Loreto, Santa Catarina de Alexandria, usando como modelo vagabundos, mendigos e meretrizes? A cortesã Fillide uma de suas companhias prediletas serviu de modelo para Santa Catarina, a Madona de Loreto tem os traços voluptuosos de sua modelo a amante Lena Antognetti, São Pedro se parece com “um qualquer” vagabundo marginal de beira de taberna.

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Neste aspecto Caravaggio faz eco com Arélio, um dos mestres da pintura antiga, que segundo Plínio, o Velho (23-79 A.D) pintava deusas com traços de suas amantes como forma de sempre adular alguém por quem estava apaixonado, não raro alguma prostituta.

Não sei se por proposital afronta o que este gênio fez foi representar os venerados santos identificados da forma mais radical que ele conhecia, com as características dos párias sociais com os quais convivia. Isso era uma acusação em sua linguagem mais poderosa contra aqueles que proclamavam que no Ano Santo devia-se lavar os pés, tratar das feridas e compartilhar os infortúnios dos pobres, sem, contudo se dispor a fazê-lo, mantendo-se apartados e limpos em seus claustros de estampa piedosa.

Medusa – Caravaggio

O que Caravaggio faz? Traz os excluídos destinados à danação do inferno social encenando histórias sagradas e os deposita no aconchego dos papas e cardeais e os obriga a ver e conviver com miseráveis, vagabundos e meretrizes, o tipo de gente que o Cristo convidava para rodeá-lo.

Em Caravaggio pulsa uma espécie de religião que emerge das sombras sob a luz inebriante de sua paleta com a força extraída da fraqueza de seus modelos – porque deles é o reino dos céus – e concebe uma pintura que tem presença física, tem carne, tem sangue.

Ele saiu pelas esquinas, guetos, tabernas, convidando quem não se considerava digno de adentrar às bodas do Cordeiro, dedicou-lhes o papel principal na peça eternamente encenada do evangelho e deu-lhes lugar à mesa sob licença da nobre arte.

Esse artigo sobre o Pintor Caravaggio foi publicado na Revista Entrementes – Edição de Verão de 2017. Confira!

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