Comentários sobre o folclore joseense #2: Sunzé na tangente da grande música marginal

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Primeiro, era do café. Depois, da estância climática. Depois inventaram que era a cidade do avião. A nossa mais nova ficção é se chamar de “cidade da cultura”. A graça do discurso é que podemos fingir que o real é aquilo que é dito, e é por isso que as pessoas falam tanto. Falar dá a ilusão de moldar a realidade. Mas às vezes só a polui.

Sobre a Sunzé do café, sei pouco. Mas sobre a estância climática, já sabemos que era uma miguelagem deslavada para atrair dinheiros para a cidade – não havia nada no clima joseense que justificasse o título. Sobre a cidade do avião, isso tem a ver com a presença da Embraer. Contudo, não há uma cultura do avião na cidade: nosso aeroporto é uma piada, e o que predomina em Sunzé é a mentalidade industrial, muito mais do que os produtos que aqui são fabricados. Poderíamos igualmente nos chamar de “cidade do cotonete”, “cidade do Celta 1.0” ou “cidade do revólver”.

Mas chamar de “cidade da cultura” é forçar a barra, hein. Vamos refrescar nossa memória com eventos recentes: foi aqui que um prefeito demitiu uma orquestra inteira pelo facebook. Foi aqui que se instituiu submeter a arte de rua a uma engessada burocracia (dizem que para fins organizacionais e logísticos, mas sabemos que o viés é higienista). É aqui que a Fundação Cultural Cassiano Ricardo, de tempos em tempos, é loteada por diletantes e por pessoas que enxergam a arte como hobby. É aqui que proliferam os festivais de bandas 3 em 1 e a brotheragem institucional.

Sei um pouco de música, então falarei de música, porque quando falo de arte, é sempre através dessa matiz. A música joseense se divide em três tipos: as culturas do cover, da gratidão e dos esquisitos. Vemos que o mercado de música joseense orbita (ou orbitou, sabe-se lá como vai ser isso depois da pandemia) a prática do cover: o profissional que vive de música percorre o circuito de bares aguentando todo tipo de humilhação e encheção de saco para voltar para casa muito cansado com seus 100, 150 reais. No campo da gratidão prevalece o good vibes, os cirandeiros e a música de escutar com os olhos: tanto faz o som, o que importa é corresponder a um conjunto de signos visuais pré-determinados que exalem uma atmosfera de leveza, de liberdade, de aceitação, de desapego, etc. É uma música geralmente feita por hipsters safadões, que ficam de olho nas menininhas que vão prestigiá-los. É uma espécie de xaveco musical com disparidade de idade. Não acho o som interessante, e sempre tenho a impressão de que a parte musical dessa prática é a que é feita com menos capricho: muita preocupação com as roupas, com a disposição no palco, com o carisma, em agitar a galera, e o som é um mais do mesmo, algo na mediante entre Los Hermanos, Seu Jorge, Lenine e outros sons mornos.

Os esquisitos eu conheço bem: me vejo como parte desse grupo. Nós temos que nos habituar a shows com 8 pessoas na platéia, a um total desinteresse pelo trabalho autoral sem verniz marqueteiro e também a uma falta de capacidade de nos articularmos em uma cena. Também temos a tendência a atrair outros esquisitos – o lado bom da coisa. Não agitamos a galera e não fazemos dinheiro, então estamos no pior de dois mundos.

Mas não é para me queixar que estou falando isso – apesar de ser um esquisito, gosto muito do que faço e como faço, e não conseguiria fazer diferente. Essa exposição toda serve de contraste para uma característica pouco comentada sobre a cidade de Sunzé: o caráter tangencial desta cidade em relação à música de margem. Veja só: estamos na tangente da margem. Compare essa realidade com o título de “capital da cultura” e veja como é engraçado. É assim que se faz humor.

Vamos falar do maior nome da grande música brasileira de margem: Arrigo Barnabé. Assisti uma entrevista do Arrigo em que ele comentava que grandes porções do disco Clara Crocodilo foram compostas em parceria com Mário Côrtes, que estudava no ITA; ele viria para Sunzé encontrar o amigo e nesses encontros ocorreriam sessões de composição. Eu e Marco Antônio (conhecido popularmente como Boi) ficávamos alimentando a fantasia de que o Clara Crocodilo foi composto em Sunzé. Mas todo delírio é chuva de São Pedro na fogueira de São João: na primeira oportunidade que tive de conversar com o Arrigo, perguntei se ele havia composto o Clara em Sunzé e ele me disse que não, que ele só vinha para cá para encontrar o amigo mesmo. Primeiro marco tangencial.

Então tem Eunice Katunda. Envergonhe-se caso você goste de música e não saiba quem foi essa mulher. Compositora importante da história da música brasileira, integrou o grupo Música Viva, foi aluna de Koellreutter, foi aluna de Camargo Guarnieri, foi pianista prodígio, foi comunista, tudo isso na primeira metade do século XX. Super f0#@. Ela morreu em Sunzé em 1990. Fui pesquisar e é só isso, morreu aqui. Segundo marco tangencial.

Há também dois paulistas, professores de música da Usp e da Unesp que se destacam como grandes compositores da atualidade: Silvio Ferraz e Alexandre Lunsqui. Ambos moraram em Sunzé. O Silvio estudou no João Cursino. O Alexandre vem pra cá de vez em quando, se não me engano, para visitar parentes. E é só isso também. Terceiro marco tangencial.

Vamos imaginar que entre São Paulo e Rio, ambos centros efervescentes de cultura, há uma linha, que não é exatamente reta. Vamos chamar essa linha de Via Dutra. Vamos imaginar a quantidade de músicos interessantes que passam daqui a acolá, e que, ao cruzar nossa cidade, vêem a Unip, a Johnson, o skyline decadente do Jardim Aquarius, o Vale Sul, o Centervale, o CTA e a GM. Basicamente viram quase tudo o que ocupa grandes espaços em Sunzé (só faltou o Banhado e o Parque da Cidade). Quarto marco tangencial.

Os Secos e Molhados compuseram algumas melodias para poesias de Cassiano Ricardo. Quinto marco tangencial.

O lendário e semifolclórico músico joseense Paulinho Azevedo uma vez me contou que almoçou na casa de Chico Buarque e que conheceu muita gente da nata da MPB. Provável sexto marco tangencial.

Um grande guitarrista com projeção nacional no cenário do blues mora nessa cidade. Falo do Lancaster. Sétimo marco tangencial.

Sunzé tem mais ou menos o mesmo tamanho de Sorocaba. São cidades parecidas; contudo, sinto que em Sorocaba há uma cultura de música mais consistente. Conheci gente lá que gosta mesmo de fazer som – as outras coisas (o visual, o entretenimento, as questões do show business enquanto evento) ficam em segundo plano. O que será que falta para surgir uma cultura de música autoral consistente em Sunzé? Talvez falte querer fazer som. Tem bastante música para bêbado burguês, para frequentador de pub, música para impressionar meninas, música para ser adorado por uma platéia, música para aumentar a auto-estima, música para se sentir parte de um grupo identitário. Mas sinto que tem pouca vontade de fazer som.

Vamo fazer som.

Vamo fazer som c@%@*#&!

Sobre Bruno Ishisaki 7 Artigos
Cancionista e compositor de música de concerto. Doutor, Mestre e Bacharel em Música pela UNICAMP. Especialista em Composição Musical pela FMCG. Professor substituto do curso de Composição da USP. Autor de conteúdo de artes na Editora FTD. Membro das bandas Senhor Shitake e Os Joseense e do coletivo Tempo-Câmara.

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