Conto – O DEUS CRONOS E OS BEATLES

O DEUS CRONOS E OS BEATLES

     Pela milésima vez no dia ele olhava para o relógio na parede… não por gostar muito do relógio, bem, ele até gostava sim, e bastante, já que era um relógio personalizado dos Beatles, uma de suas bandas favoritas, e obviamente, também deveria ser de seu patrão… mas olhava para ver se o tempo passava mais rápido. Não aguentava mais este seu trabalho-vassalo de atendente de telemarketing, e particularmente não aguentava mais aquele dia em especial… precisava ir embora para casa, esquecer que existiam telefones, e tentar continuar a ler aquele livro que fazia meses que tinha pedido emprestado e nunca devolvia. A amiga dona do tomo já tinha dado algumas indiretas, perguntando se já o tinha lido… e ele mentia dizendo que estava no final, quando sequer tinha chegado à metade. O livro até que tinha começado bem, com um crime ousado e a fuga do bandido, mas tinha caído num marasmo só pouco depois disso e sempre que tentava ler, caía no sono.
Claro que ele poderia devolvê-lo sem terminar, mas considerava isso uma derrota, já não concluía tanta coisa que começava em sua vida, ia deixar acontecer até com um simples livro? Não, de jeito nenhum!

Hoje particularmente ele não tinha tido muita sorte… quase não havia vendido nada em suas ligações, e ainda por cima tinha pegado um ou outro mal-educado, que o fez ouvir impropérios antes de bater o telefone em sua cara. Será que um dia ia descobrir porque as pessoas eram assim? Bastaria dizer que não queriam o que ele oferecia, qual o motivo de ofender, de falar alto, de tanta falta de tato para com alguém que sequer  conhecia?
Não suportava mais ser tratado dessa forma, como um bicho, sem respeito algum… tinha que dar um jeito de arrumar outro emprego o mais rápido possível, senão o estresse diário provavelmente iria acabar em infarto ou AVC!
Olhando para o relógio mais uma vez… não acreditou, só uns 3 minutos desde a última vez que tinha olhado? Será que estava com defeito? Não estava… dava para ver o ponteirinho vermelho dos segundos se arrastando, igual o tempo quando ele estava no trabalho. Bem, tinha que continuar tentando vender mais, pois a cota estava longe de ser atingida. Ligou para mais uma vítima:

– Boa tarde, o senhor estaria interessado em adquirir…      – Desculpe rapaz, estou ocupado, não posso falar agora, estou saindo de casa. Mas me dê o seu telefone que quando eu chegar em casa mais tarde eu te ligo e você pode tentar me vender seu produto.
– O quê? Não posso fazer isso, senhor, fora que logo meu horário terminará e irei para casa.
– Sem problemas, então me dê o seu fone pessoal que te ligo ao chegar.
– Senhor, não posso te dar meu telefone pessoal!
– E por qual motivo? Por acaso não gosta que desconhecidos te liguem?
– Bem, não…
– Eu também não!
Clic!

Ele não acreditou no que acabava de acontecer… o sujeito havia batido o telefone na cara dele, e ainda por cima tinha tirado uma com a sua cara! E ele já havia visto essa sacanagem em algum lugar… seria em algum filme? Talvez uma série antiga… não conseguia lembrar de onde. Maldito seja o energúmeno da ligação e maldito seja esse emprego também!
Essa foi a gota d’água, não ligaria para mais ninguém nos minutos que restavam, que se danasse tudo e todos! Faria greve! Revolution!
Cantarolou baixinho:

You say you want a revolution
Well, you know
We all want to change the world
You tell me that it’s evolution
Well, you know
We all want to change the world…     

     Aliás, estranhava que nunca tinha ouvido falar de greve de atendentes de telemarketing… mas sempre poderia haver uma primeira vez, não é?
Mirou o relógio do quarteto de Liverpool novamente… faltava pouco agora, finalmente o Deus Cronos parecia ter acordado e estava trabalhando de novo. Sentia um amálgama de amor e ódio por este relógio… por uma lado gostaria de ter um igual e por outro ele lhe lembraria o trabalho tão desprezado, ou seja, jamais poderia ter um desses. Isso o deixava frustrado ao extremo também.
Havia algo que o deixava mais amedrontado do que não poder ter um relógio igual ao do trabalho… e se por um infortúnio de sua mente tão sofrida, ele parasse de gostar dos Beatles por causa do ominoso relógio? Não, isso jamais aconteceria não é? Não queria nem pensar nessa hipótese… porquê diabos havia tido esse pensamento? Agora com certeza seria assombrado por ele por um bom tempo…

Fitou o relógio de seus sonhos e de seus pesadelos… faltava apenas 1 minuto agora! Graças por atender minhas preces, oh poderoso Cronos! Logo estaria indo para casa… lar amargo lar! Pois só seria doce quando não tivesse que pagar aluguel por ele… até lá, seguiria sendo uma morada pungente!
Já sabia de um fenômeno temporal desde que havia começado a trabalhar ali e a admirar (e odiar) o relógio “beatlemaníaco”… esses últimos 60 segundos levavam na verdade pelo menos meia hora para passar! Se não era um fato literal, com certeza era a sensação que ele tinha, pois o tempo parecia se tornar mais lento que uma pilotagem do Barrichello nos tempos da Fórmula 1. Era algo mais difícil de explicar e entender  do que as teorias sobre as Pontes de Einsten-Rosen, e seus buracos de minhoca que curvavam o espaço-tempo!

Entrou em seu mundo de pensamentos, sonhos e dúvidas, e ficou de tal forma absorto por ele – o que não era nenhuma novidade, aliás – que só acordou de sua viagem onírica quando já haviam passados quase 10 minutos além de sua hora de ir embora… soltou impropérios internos aos deuses de todas as religiões, e de lambuja aos seus profetas também… sobrando até para L. Ron Hubbard.
Deu sua última olhada do dia para o relógio que ao menos por hoje o havia liberto de suas algemas… como ele era lindo e ao mesmo tempo odioso! Então partiu apressado, não poderia perder o ônibus mais uma vez.
Quando se aproximava do ponto, lá apareceu ele, o seu ônibus! Se ele corresse, conseguiria chegar antes dele sair, pois sempre tinha mais gente para embarcar também… mas por outro lado, e se ele corresse e mesmo assim perdesse o coletivo por pouco, ficando com cara de idiota para todos ali no ponto? Não, isso ele não poderia suportar… então fez como nas outras vezes, apressou o passo e torceu para dar tempo, mas correr ele jamais correria, apenas andando rápido ele poderia fingir que não era aquele o ônibus que queria pegar, caso o perdesse. Já estava cada vez mais próximo, achou que desta vez conseguiria, mas ledo engano, o ônibus partiu, deixando uma nuvem de fumaça preta em seu lugar, quando ele finalmente chegou ao ponto. Maldita condução, poderia ter esperado só mais um pouquinho!  Mas pelo menos ele não havia sido feito de idiota e ninguém no ponto riria dele. Se bem que… será que não seria mais idiota perder o ônibus por puro medo de acharem que ele era um idiota? Que pensamento confuso… bem, deixa pra lá, já tinha ido mesmo. Agora teria que esperar por meia hora pelo próximo, nada podia fazer. Ao menos no ponto de ônibus o tempo parecia correr normalmente, diferentemente do que ocorria em seu trabalho. Devia ser pelo fato de ali não ter nenhum relógio dos Beatles.

Seu celular tocou, ele estranhou, ninguém ligava para ele, pois quase não tinha amigos, então atendeu de pronto, feliz que alguém havia se lembrado que ele existia. Então ouviu:
– Boa noite, o senhor estaria interessado em adquirir…

 DALTO FIDENCIO 
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