Crônica oftálmica

Para a maioria, outubro é o mês da Primavera. Para mim, é o mês de atualizar os óculos. E é aí onde começam meus sobressaltos.
Não tenho nada contra a ciência. Acontece que, há alguns anos, passei por um episódio oftalmológico traumatizante. Visitei um profissional que, ao examinar minhas retinas, solicitou muitos exames. Na devolutiva, o doutor levantou a hipótese de eu estar perdendo a visão. E pediu outra bateria de análises.
Como os resultados demoravam para ficar prontos, entrei em pânico. Numa madrugada, saltei do leito, sobressaltado: sonhara que estava num show de Stevie Wonder. E eu era Stevie Wonder.
Foi quando minha namorada teve uma ótima ideia. Que tal, enquanto não chegam os resultados, passarmos o feriado numa pousada na serra? Segundo ela, seria uma ótima maneira de relaxar.
Ao sair do carro, no alto do morro, respirei o ar seco, senti o cheiro do capinzal. Logo concordei mentalmente com a cara metade: ali seria o melhor lugar para curar minhas aflições.
Logo que cheguei à portaria achei curioso um detalhe da decoração: uma gigantesca bengala branca em frente ao hotel. Não poderia ser do Papai Noel, estávamos em meados de outubro. Mas logo veio a resposta. Estava acontecendo, naquele feriado prolongado, uma convenção nacional de deficientes visuais na pousada.
Voltamos na mesma tarde para casa. Continuei por um tempo aguardando os resultados dos exames. A teoria da Gestalt de que, quando pensamos em algo, esse algo passa a aparecer diante de nós, nunca foi tão verdadeira. Eu só tinha olhos para a cegueira. Se ligava a TV num canal de streaming, a primeira sugestão de filme era O Homem nas trevas. Se escolhesse um livro para ler, me caía nas mãos A Odisseia, de Homero.
Graças à minha paranoia recém-adquirida, a namorada passou a enxergar onde havia se enfiado. Deu para lançar olhares para o lado e eu fiquei, mesmo em suposto estado trevoso, a ver navios.
Os exames, por fim, chegaram. A papelada de números, gráficos e fotos revelou que minha visão era duas vezes mais aguçada do que a média da população. Sem dúvida, o pior cego é aquele cego de ansiedade.
(Publicado no Estadão)
Sobre Carlos Castelo 49 Artigos
Jornalista, poeta, humorista profissional diplomado. Um dos criadores do grupo musical Língua de Trapo.

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