DONANA

 

O dia amanheceu cinzento. Lá fora as crianças brincavam chapinhando nas poças de água, vagamente atentas à dor barulhenta que invadia a casa das varandas, curiosas, atentas ao vai-e-vem da vizinhança, ao frenesi na entrada do prédio, degradado por fora e mimado por dentro, como muitos, prédios, pessoas, coisas, naquele cacimbo teimoso. Enquanto no Alto das Cruzes o corpo acabava de subir aos céus e as últimas gigantescas coroas de flores vistosas se humedeciam sobre a terra remexida, família de berço, de vizinhança e de coração, colegas dos filhos e conhecidos dos netos, presenças de circunstância e simples curiosos arrastavam-se com solenidade para o conforto dos jipes de alta cilindrada, uns amparando o olhar dos outros, murmurando, silenciando gritos contidos, soluçando arritmicamente para dentro do peito e trocando gestos serenos numa coreografia cúmplice, palavras breves e inócuas, escondendo as emoções num manto denso de gravidade.

Em casa já o Sol se escondia com dificuldade atrás do véu granuloso de poeira e o dia avançava ao seu ritmo nos afazeres previsíveis do comba. Na ampla cozinha, panelas colossais e travessas alvas alinhavam-se como enormes autocarros estacionados em espinha; cobertas com delicados panos bordados, imaculados e escrupulosamente engomados, desencorajavam as moscas desesperadas e vagarosas forçadas ao jejum, e esperavam pelo momento certo de entrar em cena. Havia de tudo: muzonguê, calulú, feijão de óleo de palma, batata doce, mandioca, banana, farinha de pau, cacussos grelhados, bagre fumado, kanjika. As comidas da terra aguardavam a vez de alimentar as conversas intermináveis e de apaziguar os olhos brilhantes, os jogos de cartas e as anedotas que se prolongariam pelo dia fora e noite adentro. Garrafas de whisky e de vinho português – Marquês de Borba, EA, e algumas Cabeça de Burro – esperavam os que em breve chegariam do cemitério, numa marcha exaurida, famintos e sedentos daqueles momentos de partilha e homenagem à mulher que tinha parido seis filhos e criado uma enteada e uma dúzia de netos doces e talentosos, raparigas e rapazes universitários que tinham atravessado oceanos e percorrido quilómetros de aeroportos apinhados para acompanhar a família e despedir-se da Avó Ilda.

Alguns retardatários abreviavam as suas sextas-feiras e delegavam responsabilidades por sms só para darem um abraço ao velho Nascimento, como era conhecido, cego desde há alguns anos e que ainda clamava por uma operação às cataratas que tardava em acontecer, uma vez que os filhos lhe escondiam, cada vez com mais dificuldade, que a sua cegueira era irreversível e inoperável por via de um teimoso glaucoma hereditário. Mas era essa esperança que o mantinha acordado para os dias longos, isso e a avó Ilda, que era desde então os seus olhos, a voz da sua consciência e a uma espécie de memória que inventava já muito mais do que lembrava.

No outro extremo da cidade, Mariano, o jovem primo médico, esperava pacientemente pela sogra, senhora discreta e solidária que se arranjara sem demora para acompanhá-lo. Donana, assim chamada até pelos seus mais íntimos, era sobejamente conhecida pela sua reserva, fina educação e por ser invulgarmente prestável, muito mais do que pela sua curiosidade, que considerava precipitação, uma vez que estava convencida de que as informações que lhe poderiam interessar chegariam ao seu conhecimento no momento escolhido por Deus. Quando um dia lhe disseram que a curiosidade «era a mãe do conhecimento», ela sorriu apenas um olhar enternecido e observou assertivamente, enquanto degolava uma galinha–do-mato: «Sim, menino, pode ser. Mas também matou o gato». Desde então continuaria a contar-se que era da sua autoria a afirmação de que «a mãe do conhecimento matou o gato», coisa que sempre a deixou atónita e negaria com veemência a vida toda, mesmo sendo exibida como exemplo da propriedade transitiva da igualdade.

– Bom dia, Donana, vou deixá-la lá e volto num pulo depois da cirurgia, logo que consiga um bocadinho. A Donana sabe, estas coisas não têm hora para acabar.

– Sim, Mariano, faça isso. Não se preocupe comigo.

A sogra apreciava o seu cuidado com a pontualidade, numa terra em que isso parecia ser assunto de muito poucos, e apenas sorriu. Mariano era um filho e por isso não precisavam de falar, no seu entendimento. E com as outras pessoas do seu convívio também não se dispunha a isso, ou por não fazer falta diante de tão íntima cumplicidade, ou porque o não mereciam, uma vez que o que tinha a dizer-lhes estaria fora do seu alcance.

Oito palavras eram mais do que Donana estava habituada a dispensar aos seus interlocutores, fosse em que circunstância fosse, pelo que Mariano compreendeu a consideração que merecia da sogra. Irrepreensível no seu traje escuro e impecavelmente austero, Donana entrou devagar na casa do Kinaxixe e sentiu o cheiro açucarado e intenso das rosas que a amiga cultivava e acarinhava com zelo de mãe nos enormes vasos de madeira; já vozes de homens animados de Borba e comoção trepavam decibéis alcoolizados nas paredes do quarto do casal e mulheres conversavam na cozinha com um riso cinza e miudinho. As mais -velhas, sentadas na sala, servidas pelas mulheres mais jovens, recordavam façanhas da falecida, histórias comuns ou recriadas, misturando memórias com sonhos de juventude, falando do dia-a-dia, rindo com ternura da liberdade das crianças, adormecendo alguns bebés que teimosamente se mantinham alerta ao movimento inusitado.

Donana foi sendo conduzida às várias divisões da casa infinda, o genro afastou-se silencioso, cumprimentou rapidamente os mais próximos e desculpou-se com a cirurgia inadiável, todos compreenderam.

Donana prosseguiu, apresentou o seu semblante pesaroso, foi ficando carregada, transportou-se num vulto escuro e percorreu as paredes procurando apoio. Dispensou breves palavras, estreitou abraços e aceitou os kleenex que alguém lhe colocou providencialmente na mão. A família crescia a cada passo e a casa escondia ainda inúmeros e deliciosos recantos, a área parecia multiplicar-se em ocasiões como esta, com tantos visitantes recostando-se em cada ângulo das varandas, ensaiando um precário equilíbrio em esquinas de floreiras, uns quantos enterrados nos sofás, alguns fumando calados na varanda principal, mirando com inveja as crianças cá em baixo que continuavam a chapinhar na água insalubre e na chuva miudinha.

Donana deu a volta à casa e alguém a forçou a sentar-se, colocando-lhe um prato de caldo nas mãos e oferendo-lhe um dedo de Marquês de Borba num pesado copo de cristal.

Obrigada, menina- Donana parou para suspirar- Mas antes vou abraçar a Ilda.

Como não obtivesse resposta, Donana insistiu- Sim, a Ilda. Onde está a Ilda?- continuou mais uma vez enquanto o silêncio ia preenchendo o volume das divisões até chegar ao entendimento do viúvo, anestesiado pelos vapores da emoção.

–  Ilda!- agora era já um grito, enquanto no chão o muzonguê ofuscava o brilho do parquet encerado.

– Ilda, onde estás, minha comadre?- Donana invadia, cega, penteado desfeito, a sala dos homens, e agarrava-se num pranto sufocado ao velho Nascimento.

Quando desmaiou foi levada para o quarto e aos poucos acabou por recobrar os sentidos. Contudo, de cada vez que melhorava, voltava a perguntar pela comadre. Levada mais tarde à presença do genro, Donana queixava-se de ter sido posta à margem, de não lhe terem explicado que a falecida era a sua comadre e amiga de sempre.

– Mas a Donana também não perguntou…

Donana era uma mulher discreta e reservada. Não fazia perguntas mas sempre obtinha respostas. Nesse dia, porém, a noite caiu cinzenta, enquanto as crianças continuavam teimosamente a chapinhar nas poças da praça alagada pela chuva que descia insistentemente dos seus olhos.

(Publicado originalmente no Jornal Cultura, Jornal Angolano de Artes e Letras, a 19-01-2015)

Sobre Luisa Fresta 24 Artigos
Luisa Fresta Nascida em Portugal, viveu infância e adolescência em Angola. Dedica-se sobretudo à escrita, sob a forma de contos, crónicas e poemas. Escreve regularmente em vários jornais, revistas e sites. OBRAS DA AUTORA: BURRO, SIM SENHOR! (Editorial Novembro, 2021), SAPATARIA E OUTROS CAMINHOS DE PÉ POSTO (Editorial Novembro, 2021), A FABULOSA GALINHA DE ANGOLA (Editorial Novembro, 2020), MARÇO ENTRE MERIDIANOS, reedição (Livros de Ontem, 2019- Portugal) e primeira edição (MAAN, 2018 - Angola/ Prémio "Um bouquet de rosas para ti"), CONTEXTURAS (Livros de Ontem, 2017)

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