Data: 17-12-2019 19-12-2019 Nome: Luísa FRESTA
Ficha de leitura
Título : CONJUGAÇÃO DE MAPAS
Autor : Regina Correia
Editora : Editorial Novembro ©
Coleção/ Edição : 1ª edição
Ano de publicação : 2020
Género literário : Poesia
Número de páginas : 188
Capa : Pintura de Armanda Alves, Angola (Acrílico s/cartão, s/título, 2018)
Resumo : Excerto do texto “CONJUGAÇÃO DE MAPAS, OU SOBRE OS EXÍLIOS, A VULNERABILIDADE E A PERDA”[1]
Ler Regina Correia é percorrer também o seu eixo temporal desde a infância, revisitar espaços que lhe são caros, onde viveu, amou, construiu e sonhou. Sobrevoar Viseu, conhecer Lisboa e Luanda, parar anos-instantes em Estugarda e Hamburgo, impregnar-se de insularidade e conhecer o Funchal e o arquipélago de Cabo-Verde. Cidades, países e regiões com os quais estabeleceu laços duradouros, intensos, e de onde trouxe também marcas perenes e visíveis (um filho, o amor, projetos políticos, académicos e literários). Trata-se de uma autora premiada, com um sólido e longo percurso em prosa e poesia; e intrigante, pela sua versatilidade, efervescência e capacidade de compor textos e edificar templos sobre o caos e o vazio dos tempos — os seus desertos— sobre os exílios, a vulnerabilidade e a perda.
A presente compilação de poemas configura uma CONJUGAÇÃO DE MAPAS, ainda que este auspicioso título não lhe tivesse sido atribuído. São mapas sobreponíveis ao traçado das suas reais deslocações e permanências ao longo da vida. Acrescentamos aqui a ilha do Mussulo e arredores (Macoco e Ilhéu dos Pássaros, em S. João da Kazanga), a fenda abismal da Tunda Vala e as grutas de Ondimba, no Tchivinguiro (Huíla), a cidade do Lubango e Pretória, os rios Dande, Kwanza, Tejo e Elba e, quase inevitavelmente, a cidade reinventada por Manuel Bandeira, ironicamente ideal: Pasárgada.
(…) Regina Correia tem um léxico próprio centrado em temas concretos e a observação do corpus linguístico dá-nos informações preciosas sobre as temáticas que a solicitam de uma maneira quase obsessiva, como sói acontecer com muitos autores da sua dimensão e coerência.
Eis alguns exemplos que nos podem servir de rascunho para o “trailer” do presente poemário: mar (inclusive nos títulos), rio e oceano, que no seu conjunto perfazem mais de cinquenta ocorrências, palavra, azul, fogo, deserto, pássaro (com especial menção para o “pássaro azul”), amor, vulcão, pátria, lava, Janeiro, barcas e Agosto. Estes são (alguns) termos que intuitivamente “ouvimos” de forma recorrente e cuja presença se confirma através de uma busca mais aprofundada; encontram-se aqui listados por ordem decrescente. Outrossim, em aditamento a este conjunto de características que sobressaem desde a primeira leitura, diríamos, em jeito de brainstorming, que a temática se fixa subtilmente em ideias/lugares/situações como a morte, a saudade, a pobreza extrema, o desejo, a natureza, a infância, a família, Angola e Cabo-Verde.
As múltiplas geografias da autora estão assim arrumadas nos seus textos com contornos biográficos e que recuperam memórias relevantes dos trilhos conhecidos no mato, na praia ou nas cidades, atravessando o ar gélido do Janeiro europeu ou o calor estival de Agosto, que podem também configurar fins de ciclos — fim de ano ou término do período escolar. (…) Por outro lado, a geografia pessoal da autora engendra uma multiculturalidade resultante das experiências que assimilou e passou a integrar na sua postura perante a vida. Tais cicatrizes, na melhor aceção possível, são também visíveis na poesia, assim como a fauna e a flora, feras e insetos, flores e plantas, árvores e arbustos viçosos e exuberantes, entre buganvílias e jacarandás. Esse vaivém frequente entre Portugal e Angola, na infância e na juventude, como é evidenciado nos apontamentos biográficos, converteu a autora numa personagem fascinante, rica em vivências díspares, exemplo perfeito de miscigenação e de fusões que se revelam em cada parágrafo.
O livro divide-se sobretudo por várias GEOGRAFIAS que finalmente se encontram na CONJUGAÇÃO DE MAPAS (último capítulo). Todos os capítulos evocam outros poetas para introduzir a atmosfera dos textos, sendo que estes últimos são quase todos dedicados a pessoas que intuímos pertencerem ao círculo de afetos restritos da autora (e não apenas a poetas com quem mantem uma forte relação de cumplicidade e de admiração recíproca, de Cabo-Verde, de Portugal, de Moçambique ou de Angola).
Em GEOGRAFIA PRIMEIRA surgem-nos as origens, as memórias e a língua, essoutra pátria, junto com peixes e ilhas. [“I/(…)Ninguém /determina/ a pátria onde/ sou. //Reconheço-me na/ conjugação de mapas que a/ Língua vem tricotando/ retalho a retalho/como se um manto de/ luz/ abrisse todas as portas (…)”; “IX /(…)Um arquipélago de/ anil e de basalto/ intrometeu-se/ desassombradamente na/ teia dos/ continentes(…);(…)onde o dia /em modo futuro /se vestia de/pão e fonema(…)”].
Registamos a esperada menção — explícita— a Cabo-Verde, que é parte da trajetória emocional e identitária da autora, e também uma relação intertextual com Pão & Fonema, de Corsino Fortes.
Já em GEOGRAFIA DAS INTERMITÊNCIAS é a vez e a voz da família, ausentes-presentes, mas também dos abismos e invernos, da saudade e da melancolia, vincando sempre o sentimento insular, a partida e os lutos. [“(…) Onde te escondes/ deus do pão bolorento nas/ bocas desdentadas? (…)”]: lemos indignação perante a miséria, frustração transmutada em palavra, em hino poético.
O livro abre-se para a intimidade e o amor, o desejo e a feminilidade em GEOGRAFIA DA “IMORTAL PAIXÃO… EM MORTAL ARGILA”, mas também se escreve com tintas de amargura e de ausências. Em poemas como SINAIS ou INCONDICIONAL a autora surpreende-nos com rimas consoantes e ricas, desviando-se ligeiramente do verso habitual que corre livremente pelas planícies, savanas e montanhas, e escorre pela boca dos vulcões como lava incandescente. Aqui ouve-se Luanda, é Luanda, são as rememorações de um tempo reconquistado ao caos; os versos estão embebidos em lirismo com a ternura selvagem de quem escreve como quem respira correndo com passo regular e firme. O romantismo tem a suavidade de um punhal embainhado em seda: [“(…) Ferve em meu sangue recluso/ cicatriz proibida do transe/ que a morna para sempre gravou/ no veludo nocturno das bocas/ acariciando o luar…(…)”;”(…) Erguia-se na geometria do destino/ Sonhada canção ridente no chão guerreiro / Contra puritano brado quase ferino/ Impresso em teu olhar de anjo feiticeiro(…)”]. Ferve a música, fervem as ilhas e o amor, porque as palavras têm chão e ocupam uma área física que lhes é destinada. Não são apenas lançadas no vácuo, têm e criam raízes, crescem em terreno fértil resguardadas pelas fronteiras da terra que lhes cabe ocupar.
CONJUGAÇÃO DE MAPAS é o destino deste périplo com paragens no Tejo e no Mussulo, onde reencontramos a noção de pátria entre rios e pescadores, terra, vulcões e mornas, como pano de fundo da noite. A infância revisitada, o abraço familiar resistindo à erosão do tempo, os cheiros e as inúmeras menções à paisagem, e marcas culturais quotidianas. Tudo nos remete para Luanda num compromisso elegante e genuíno entre prosa poética, técnica apurada, nomeadamente no recurso ao enjambement, e emoção sempre ao rubro, à flor da pele.
O tempo não começa nem acaba em nós. Quando “chegámos” encontrámos espaços construídos, rios, ilhéus e pássaros. Apenas damos continuidade pela enumeração do que conhecemos e reinventamos em cada verso. Regina Correia é uma autora intemporal, de continentes múltiplos parecendo enormes ilhas. “Das pitangas, da fruta-pinha”. O que nos propõe nestas páginas é o ritmo da vida urbana com o sabor do mato, da fruta fresca e doce.
O prazer da solidão e da clausura não parece uma atitude introvertida mas um espreitar para dentro — viagem ao centro de si. A intimidade com o corpo traduz-se em sensualidade; o corpo palpável, o corpo presente ou o corpo alheado. Seus passos são gigantes e a mente arejada. Por vezes as contradições estruturais ameaçam a esperança porque Regina Correia, observadora privilegiada, olha com o coração apesar de sentir com racionalidade. É uma narradora cerebral, não obstante ter os olhos toldados pela tristeza do que não pode superar senão pela dimensão social e poética das palavras.
Porque o poeta é arauto da dor alheia e a dor alheia é também a sua; o outro não é senão uma extensão de nós mesmos. Também são crónicas de guerra ou cartas de amor, orações e murmúrios, gritos e cantos, os poemas que encontramos de caminho para Pasárgada, esse destino simbólico onde cada qual vive a sua experiência, na preparação da viagem, no sonho ou na estadia imaginada.
Este livro precisava de ser dito; pela autora e pelos seus leitores. E precisava de emergir das águas e das sombras tal como nos chega: afigura-se-me uma tapeçaria imensa e colorida onde cada poema dialoga com alguém, palpável ou distante no tempo, referindo a sua obra ou o seu legado. Regina Correia usa esta via para reacender a humanidade em nós, assim como para render homenagem às pessoas que com ela construíram pontes e galgam oceanos como estradas mansas e lisas, para exaltar quem estará sempre presente, suave e incorruptível, diante do seu olhar verde de folha outonal.
[1] O presente texto, na sua versão integral, está incluído na obra CONJUGAÇÃO DE MAPAS.
Onde adquirir o livro em Portugal:
https://www.wook.pt/livro/conjugacao-de-mapas-regina-correia/24324819
LUÍSA FRESTA.
Apresentação fidedigna que a grande e Humanista Poeta REGINA CORREIA nos transmite através de todos os seus BELOS, SÁBIOS e inolvidáveis Poemas em “CONJUGAÇÃO DE Mapas”, todos caracterizados por uma sensibilidade ímpar,conhecimento e experiência sem igual de todos os lugares da sua existência e permanência de VIDA. Depois de a ler-mos,só nos apetece conhecê-la e guardá-la para sempre, num cantinho escondido do nosso ser Divino. Obrigada Luísa Fresta e parabéns por tão sábias e merecedoras palavras que fielmente caracterizam o amor, devoção, sabedoria, e inteligência da nossa Poeta de eleição, REGINA CORREIA
Eunísia,
As suas palavras são justíssimas sobre a obra da Regina Correia, poeta imprescindível do nosso tempo e da língua portuguesa.
Um beijinho de gratidão,