Finalmente livre

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Por Milton T. Mendonça

A corrida o fazia suar. A distância não era longa, mas muito extenuante para alguém que não corria nunca. A rua mal iluminada era uma faca de dois gumes: o escondia do facínora que o perseguia, mas também não o deixava ver. Entrou no quintal logo ao virar a esquina e se abaixou atras do muro. Olhou por cima deste e nada viu. O cachorro latiu na casa ao lado avisando que algo mudara na noite escura, intrusos invadiram seu território e não gostara nada disso.

Joaquim descansou, atento. Sua respiração estava pesada e isso atrapalhava o raciocínio. Olhou outra vez por sobre o muro e viu a sombra de seu oponente no chão sob uma luz tênue que irradiava de um alpendre recém aceso. O braço longo segurava a arma. Retraiu o corpo instintivamente colando ao tijolo à sua frente. O cheiro de barro cozido penetrou suas narinas como fogo. Prendeu a respiração ao ouvir os passos se aproximando e se afastando sem notar sua presença. Relaxou. Levantou a cabeça lentamente até vê-lo pelas costas. Os cabelos longos estavam presos em um rabo de cavalo mal feito, o porte de pistoleiro era evidente. Alguém o contratara para assassiná-lo. Estava chocado.

Não tinha medo! Analisou suas emoções e percebeu que sentia prazer, sorriu. Era isso que esperava há muito tempo: um deslize. Seu inimigo dera as caras finalmente, agora ele era o caçador. Abaixou-se e se sentou no chão de terra, escondido pela vegetação mal cuidada. Seu cérebro estava a mil por hora, o pensamentos racional de que tanto se gabava surgiu solícito para o ajudar, precisava de um plano rápido, não podia deixá-lo escapar. Olhou em volta tentando encontrar algo que pudesse usar como arma e viu o barracão com a porta aberta não muito longe. Correu furtivo em sua direção entrando sem fazer ruído.

Lá dentro uma confusão de ferramentas, juntamente com outros materiais, deixavam claro sua utilidade. No meio da confusão encontrou uma haste longa e flexível onde amarrou uma faca enferrujada a transformando em uma lança tosca. Pegou a corda encontrada em um canto e enrolou cruzada no peito. Seu coração batia apressado, se sentia vivo, quase agradecido ao inimigo. Nos últimos quinze anos saíra pouco do ateliê, sua vida se resumia em pintar telas cada vez maiores procurando colocar para fora àquela sensação de inutilidade. Sentia-se vazio, sem perspectiva, um morto-vivo.

Mas agora a vida retornara. Pegou a arma e correu para fora abaixado. Procurou o marginal mas não o encontrou. Encostou-se ao muro. Ficou ali parado, alerta, até que um movimento imperceptível destacou o matador do tronco da árvore que camuflava sua silhueta, o tornando invisível para olhos menos perscrutadores. Ele estava de tocaia. O brilho de seus olhos, àquela distancia, mostrava a frieza do profissional. A hora chegara, seu corpo retesou e o cérebro disparou em busca da melhor alternativa.

Deveria matá-lo ou apenas aprisioná-lo? – esta era a pergunta que lhe martelava o cérebro. A morte era mais fácil, poderia acabar com sua vida sem ao menos reconhecer qualquer humanidade. De longe. Prendê-lo o faria diferente. Não era um assassino frio, a morte nunca lhe dera prazer, muito ao contrário, sempre se revoltava ao saber de mortes trágicas. Anunciadas. Precisava saber quem era o mandante, ele não poderia ficar impune.

Saltou o obstáculo a sua frente caindo do outro lado. Encoberto pela sombra chegou à esquina, virando-a, sempre com a lança à mão como se fosse uma borduna. Aguardou.

Sabia que fora visto e, confiante, o meliante o perseguiria cantando vitória por antecedência. A cabeça do homicida surgiu ao alcance do golpe segundos antes de receber a bordoada vibrante, o deitando ao solo sem nem mesmo saber o que acontecera. Acendeu o fósforo e olhou seu rosto pálido, não o conhecia. Arrastou-o até o barracão amarrando seus braços e pernas com tamanha fúria que precisaria cortar a corda caso pretendesse soltá-lo. Esperou tranqüilamente que acordasse, sentado em um canto, saboreando a pequena vitória.

A madrugada caminhava para o seu ocaso quando um gemido o despertou da semiconsciência. Levantou-se e chutou o prisioneiro tentando assustá-lo.
O quê?
Resmungou dolorido.
Quem é você?
Perguntou entre dentes, com ódio na voz.
O que importa isso?
Quero saber quem vou matar.
Respondeu chutando novamente, o fazendo gritar.
Joaquim encheu-lhe a boca com a estopa encontrada no local e esperou sua respiração normalizar. Depois vagarosamente olhando-o feroz, lhe quebrou os dois joelhos. Esperou que se acalmasse, e retirou a estopa de sua boca
.
– O sol está nascendo – falou rápido – temos tempo somente para uma pergunta, se responder viverá, se não, não terei piedade. Quem mandou você me matar?
Ai! – reclamou – me leva para o hospital.
choramingou pedindo clemência.
Quem mandou você me matar?
perguntou novamente demonstrando todo seu ódio.
Ai! Leve-me para o hospital.
choramingou novamente.

Com a lança em punho, Joaquim enterrou a lâmina na garganta do assassino quase decepando sua cabeça, o fazendo gorgolejar de uma maneira sinistra. Olhou a cena hipnotizado. Com grande esforço, deu as costas ao morto e procurou rapidamente ao redor algo que o denunciasse, nada encontrando, partiu com a arma na mão. Saiu do terreno no momento que o sol nascia no horizonte, olhou as mãos, depois toda a roupa, percebendo que não havia vestígio de sangue. Estava feliz. O calor morno massageava sua pele, seus músculos. Sentiu abrir a comporta do coração e toda raiva acumulada ao longo de décadas derramaram lavando sua alma.

Caminhou devagar pela calçada aspirando o ar da manhã, era o princípio de uma nova existência, livre da dor que o amarrava fortemente ao chão sujo e miserável daquela estrada que não era sua. Lembrou-se do mandante do crime e deu de ombros. “Ele que se danasse” – pensou – “provavelmente se esconderia na sua torpeza e nunca mais teria coragem de aparecer.”

Chegou a casa se deparando com suas telas esparramadas pelo ateliê e não sentiu vontade de pintar. Sentou-se no sofá que o embalara em muitas noites solitárias.

Lembrou-se de Elisa e um sentimento novo invadiu seu corpo o deixando surpreso – “vontade de vê-la?” – se perguntou – “era isso que estava sentindo?” Abanou a cabeça, decidido a parar de pensar, cansara de racionalizar suas emoções. Levantou-se de um pulo, sacudiu a poeira da roupa, bateu a porta atras de si saindo para a rua repleta de gente. A vida lhe sorria como nunca sorrira antes.

Liberdade! – gritou com toda a força de seus pulmões, pouco se importando com os rostos que o encaravam perplexos. Sorriu para os mais próximos e desceu calmamente a avenida com as mãos no bolso.

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