Koo, eu me lembro muito bem

Nunca imaginei que Elon Musk um dia fosse me ajudar a lembrar de um evento. Normalmente, quem faz isso é a minha agenda. Acontece que, por causa das trapalhadas do homem mais rico do mundo no Twitter, surgiu a rede social Koo. E com a sua ascensão, inclusive aqui pelas barrancas pindorâmicas, veio inteira e cristalina a tal da reminiscência.

Estávamos pelos anos 1990. Eu obrava como redator de uma agência de publicidade, dona da conta de uma gigantesca multinacional coreana. Numa tarde modorrenta caiu sobre minha mesa um pedido de trabalho da referida corporação. Criar o convite para um jantar com o CEO da companhia, cuja sede ficava em Seul.

O emérito cidadão estaria em São Paulo, dali a dez dias, a fim de palestrar à sua diretoria local e à imprensa especializada. Logo após o speech seria servido, em grande estilo, um rega-bofes obviamente de feição oriental.

Não sei se caprichei demais nos dizeres da convocação para o acontecimento, mas acabei sendo convidado para o encontro coreano-brasileiro.

Em início de carreira não se enjeita nem dose de Corote quente. Era evidente que eu não faltaria a uma ceia daquelas proporções. Meti-me num terno emprestado de um primo e ocupei assento na távola destinada aos privilegiados.

Às 19h59, em ponto, dezenas de assessores entraram no recinto avisando de forma solene:

– Seu Koo vai chegar em dois minutos!

Diante de fala tão áspera, imaginei que, antes da janta propriamente dita, teríamos um stand-up introdutório. Estava errado. O nome do CEO da multinacional era Koo.

O que sobreveio a seguir foi um desfile de frases relacionadas à alcunha do homenzinho que fariam a felicidade dos mais infames alunos de quinta série. Já em sua entrée no salão nobre, o mestre de cerimônias reverberou através do microfone:

– Por favor, uma salva de palmas para seu Koo!

Muito ovacionado, Koo se acomodou à cabeceira, bateu com o garfo na taça, e um asiático se postou à sua direita.

– Agora, traduzirei o que seu Koo disser – revelou ele.

Nem nos mais apimentados shows de Costinha se ouviu tantas vezes a palavra Koo num discurso. Era Koo pra lá, Koo pra cá, e nada de servirem as iguarias. Passados cerca de 30 minutos, Koo pediu água e se abundou na cadeira.

Era a senha para o início dos trabalhos gastrológicos.

Uma miríade de garçons adentrou ao recinto servindo vinhos de várias linhagens. Minhas lombrigas começaram a se manifestar de forma entusiasmada. Momentos depois foram dispondo pratos, com um fumegante quitute, à frente de cada um dos convivas.

Quando todos estavam servidos, novamente a taça tilintou e Koo se ergueu, sorridente. Disse meia dúzia de palavras ininteligíveis, logo vertidas pelo assessor:

– Em nome da tradição, e por se tratar de uma noite extraordinária, hoje nosso prato principal será cozido de cachorro. Aproveitem porque em meu país a prática está proibida.

Terminei de ouvir o CEO se manifestar sobre o cardápio, depositei os talheres ao lado do prato, e pensei: “ah, vai tomar no meio do seu nome, vai!

(Publicado no Estadão) 

Sobre Carlos Castelo 49 Artigos
Jornalista, poeta, humorista profissional diplomado. Um dos criadores do grupo musical Língua de Trapo.

1 Comentário

  1. Que dureza, conseguiu sair na boa do jantar?  sem mandar todo mundo falar com seu Koo. Nem digeri o tik tok pois haja toc toc em meu dia a dia. Imagina este  koo .. só me cadastrei. Abraços venha nos fazer uma visita na redação do Entrementes. Quem sabe um café de 25 reais num hotel perto do makro e dos bordéis chiques da cidade. Afinal dizem que Sanja é a capital da curtura.

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