No caminho para a praia tinha uma pastilha

Rua Conselheiro Lafaiete, 60, Edifício Luiz Felipe – Copacabana. Paralela à Avenida Atlântica, apenas três quadras abaixo. Era ali mesmo. Todo pastilhado, construção de 1947. Fiz uma conta rápida e vi que o prédio já tinha 40 anos quando Carlos Drummond morreu. O apartamento dele era o 701.

Parado em frente ao edifício, ali fiquei. Entre o fim da madrugada e o nascer do sol, hora do sono do mundo. Assim permaneci até que o silêncio foi quebrado quando uma equipe de limpeza, com máquinas e produtos químicos, começou a limpar o encardido da fachada. Fazia sentido. Começo de ano chegando, cara nova para a área externa dos apartamentos e energias renovadas para os moradores.

Caminho em direção à praia e avisto uma pastilha do edifício na calçada. Devia ter se desprendido com a pressão da água na lavagem. Que recordação bacana, pensei.

Resgatei o quadradinho do chão e fechei bem firme a mão direita, para não perder a relíquia. Mais uns metros de caminhada e cheguei à estátua de bronze do Drummond – com ele de costas para o mar e de frente para o calçadão. Sentei ao lado do poeta enquanto admirava a pedrinha.

– Vai fazer o que com isso? Essa pastilha aí não é caco do Coliseu nem lasca da Pirâmide de Quéops. Ainda se fosse pastilha para garganta, teria lá sua serventia… sabia que sou farmacêutico, né? Nunca exerci, mas sou.

Entenderei perfeitamente se você, leitor, não acreditar em mim. Mas juro que a estátua ganhou vida, veias, poros e movimento. Embarcando na loucura, respondi:

– Além de farmacêutico deve ser também alquimista, pra transformar bronze em carne e osso!

– Pouca carne e quase tudo osso, a essa altura da vida.

– Pare de dar-se tão pouca importância, por favor. Você é mais forte e eterno que todo o minério de Minas. Este pedacinho da sua casa, pelo menos pra mim, é um pedaço seu, poeta.

– O senhor deixe de romantismo barato. Falar assim já era velho na minha época, de maneira que…

Um estrondo, vindo dos lados do Arpoador, o interrompeu. Virei a cabeça por um instante e, quando voltei a ele, acabou-se: o Carlos magro e curvadinho, meio que lembrando o Corcovado não muito longe dali, tinha virado bronze de novo.

Aproveitei o horário morto da manhã, quase sem caminhantes no calçadão, para tentar tirar-lhe os óculos. Só para confirmar se a façanha era mesmo fácil de perpetrar, como diziam (a prefeitura do Rio não vence colocar óculos novos).

Não soltaram da cabeça. Devia ter aproveitado enquanto falava com o Carlos vivo. Os óculos, pela lógica, deviam ser de acetato.

Só peço ao tempo que não me faça esquecer que, no caminho para a praia, tinha uma pastilha. Tinha uma pastilha no caminho para a praia.

Esta é uma obra de ficção

© Direitos Reservados

Imagem: edifício citado no texto, fotografado pelo autor.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*