O louco e o enterro

 

A cidade é um buraco. Em um buraco. Luzes lá no fundo. Que vem de carro ou ônibus pode ver o buraco iluminado. E então o buraco se dissipa e nos engole, e estamos nas ruas, pequenas e apertadas da cidade. E as casa nos olhando. E as pequenas árvores enfileiradas, e alguns cães. Toda cidade tem seus cães. Todo cão tem uma cidade. E pulgas. Somos todos pulgas a serem esmagadas. Não há sorriso algum. Para que sorrir? Desperdício de energia facial. Glacial o rosto. Morto. Esperando o choro e os abraços. Tenho horror de choro e abraços. Prefiro o silêncio. Mais dolorido, mais intenso, perene. Chorar é como cagar. Depois tudo fica bem. Acho que nada fica bem depois. Sou meio pessimista. E tenho nojo de gente. Gente tem que falar e opinar. Gente tem que mostrar consideração. Gente tem que fingir que é gente. Mas no fim tudo é cão. Tudo é cachorro. Osso e carne. Tudo é comer e foder. E eu estou cagando pra gente. Mas quando morrem é diferente. Aí é memória. Já não são cães, são lembranças. Eu gosto de lembranças. Acho que minha vida é apenas uma lembrança. Pra mim. Os outros que se fodam. Lembram de mim? Espero que não, espero que tenham me esquecido, que tenham me apagado. Ser apagado é interessante. Não ser nada na cabeça de ninguém. Mas é aí que mora o problema. Sempre somos um corpo estranho na mente de alguém. Menos nos mortos. Nossos mortos também. Já forma. Nos liberaram de suas lembranças. Estamos mais livres. A morte nos livra, meio que nos concede uma liberdade do juízo que fazem de nós.
Não gosto de enterros. Não sei expressar dor nem fingir. Glacial. Sei sentir dor. Muita. Mas não consigo demonstrar. Nem quero. Enfadonho.
Depois do enterro estou na casa. Meu pai e a casa. Agora só a casa. E eu. Não era muito social meu pai. Pouca gente. Olhares estranhos e atravessados. Minha imagem na cabeça deles, estavam tentando lembrar, ver minha infância, juventude. Queriam me prender em suas tramas de memórias e lembranças. Eu queria fugir, mas olhei na cara deles. No olhos deles. Eles têm medo. Sabem quem eu sou. O filho louco do Senhor Henrique. E baixam os olhos. Buscam nas lembranças meus gritos pelo pátio, os enfermeiros me agarrando e levando para o hospício. Buscam lembrar da minha violência, da vez que tentei enforcar meu pai. Das lágrimas da minha mãe. Talvez eles tenham na memória até mesmo o enterro da minha mãe. Eu não. Não vi, não senti nada. Só fiquei sabendo mais tarde. Muito mais tarde.
Logo que puderam todos se foram. E eu fiquei na casa. Em pé na sala. Casa antiga de morrer. Cada canto a morte. Morte velha. Mal cheirosa. Eu gostava da casa. Do silêncio da casa. Agora era minha. Casa escura. Pátio grande. Duas laranjeiras secas. Casa de morte. Casa de morrer velho. Eu morreria velho? Não acreditava nisso. Não parecia ser um destino ideal para mim. Sentar e esperar o tempo destruir o corpo e a memória desse corpo. Muito confortável, muito fácil. As forças que regiam minha existência tinham mais a ver com o caos, com a tragédia. O tempo não teria meu corpo em sua ceia.
A janela aberta para a rua. Poucos carros. Cidade pequena. Um cão sentado me olhando lá do outro lado. Gostaria de sorrir. Dizer que ainda não era hora. O cão me esperava, sempre me esperava. Carne e osso. É o que vinha em mim. Carne e osso. Olhos cintilantes de assustar mortais. E sou louco. E os loucos não são mortais. Dizem que os loucos têm algo de místico, eu não sei. Pra mim tudo pra mim é baboseira. Até o cão de olhos faiscantes que saliva sempre atrás de mim. O Cão. Quer carne e osso. O jacaré do Peter Pan. Abro a porta e o encaro. Nós dois, um em cada lado da rua. Meus olhos buscam os dele. E busca os meus. Talvez sejamos um só. Glacial. Ele levanta e vai. Eu entro. Há um frio na rua. Um frio que percorre minha espinha. Sento no sofá do meu pai. Ligo a tv. Ela não liga. Morta. Escura. Mas eu fico ali vendo a escuridão. Olho pela janela para conferir se o Cão ainda me esperava. Não. Tinha ido. A escuridão é minha?
Fecho a porta com chave. A casa antiga fica para trás. Caminho pela rua. Silenciosa. Ir embora. Sempre ir. Caminhar na loucura não é fácil. Sempre criar estradas e ruas. Forjar caminhos possíveis. Cansativo. Andar é a terapia. Caminhar no gelo infernal da minha vida de louco. Ver o que ninguém vê. Ouvir o inaudível. Glacial.
Há vida nisso? É viver? Quem quer saber? O corpo quer apenas carne e osso. Guardo essa memória. Não sei por quanto tempo. Em breve tudo se turva, tudo se mistura, caos. Realidade e ficção. Ilusão e verdade. Foda-se. Existir não é algo ideal. Existir é… existir. Acho que é isso que faço. Sou bom em existir. Não tenho preferência por realidade ou ilusão, por verdades ou mentiras. Me alimento bem das duas coisas. Estou no meio, na frincha, e estou relativamente bem no meu intento de existir. Não quero a casa. Nem a memória dessa cidade. Não como elas são ou estão. Aceito como elas ficarão. Turvas. Eu sei. Sei dos silêncios que me acompanham. Aprendi a viver dentro dele. Caminhar nele. Como um deserto. Um nômade, um tuareg. Não preciso de muita água.
Já estou longe. Sempre estive muito longe…


Pedro Osório 27/07/21

Sobre Ronie Von Rosa Martins 25 Artigos
É mestre em Educação pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (2012), especialista em Literatura Contemporânea Brasileira pela Universidade Federal de Pelotas(2002) e também especialista em Linguagens Verbais e visuais e suas Tecnologias pelo IFSul-Pel.(2008). Atua como professor na rede Estadual da cidade de Cerrito e na rede municipal da cidade de Pedro Osório, Rio grande do Sul. Tem experiência nas áreas de Literatura e Formação de professores, com ênfase na articulação entre Literatura e filosofias da diferença.

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