Quimera – Capitulo I

Odeio ser apenas um observador. Não sei por que as pessoas se sentem confiante em se abrir comigo. Talvez pelo fato de ficarem parados por muito tempo enquanto vou extraindo os  traços de seu corpo  e depositando na tela. Isso deve surpreendê-las criando a fantasia de que sou algo sobre-humano ou sei lá o que. Mas não sou!   Sou apenas uma pessoa normal que pensa e sente como qualquer outra. E odeia! E sente ódio em ser apenas um observador passivo da vida de seus modelos.

Estou iniciando o texto com esse aviso porque não ligo se achar meus personagens medíocres… Não tenho culpa. Sou apenas um observador… E odeio ser apenas um observador. Por isso talvez eles se transformem em personagens medíocres…  Porque eu odeio ser apenas um observador…

Mas não importa…

Acabei de me mudar para esse novo endereço. O local é interessante. Fica acima da rua sobre uma loja de animais. Um pet shop. Gostei daqui porque sou acordado toda manhã com chilreio de pássaros e isso me remete à fazenda onde por algum tempo fui muito feliz… Foi lá que eu pendurei o banner procurando modelos. A proprietária da loja gostou de ter um artista morando tão perto de si e isso a fez me enviar algumas pessoas

Acho que preciso descrever o ateliê para que você conheça o ambiente… Não que isso importe, mas creio que devo posicioná-lo em algum lugar.

Uma porta de vidro se abre para a escadaria com exatamente cinquenta e oito degraus que leva o caminhante ás portas de meu apartamento. Que é também meu ateliê. Abro a porta e olho-a. Elisa, minha nova modelo. Vejo uma garota desbotada cicatriz no queixo nariz arrebitado boca carnuda olhos verdes e cabelo desgrenhado de uma cor indefinida. O corpo não muito melhor que o rosto me surpreende pelos sapatos verdes de duende. Lembro-me de ter pensado que aqueles sapatos ficariam bem na tela.

Ela me olha de volta por um segundo para em seguida desviar o olhar para a sala. Meu ateliê. Seus olhos brilham ao se deparar com a bagunça de tinta e telas espalhadas numa confusão eloquente. Passa por mim sem dizer nada e circula pelo recinto parando frente à tela que está por terminar. Um senhor sóbrio de terno negro bigode pujante e olhar arguto a observa do outro lado.

– É para o banco.

Resmungo chateado.

– Preciso comer.

Desculpo-me por estar perdendo meu tempo e isso me deixa com ódio.

Ela nem me olha. Apenas balança a cabeça confirmando que entendera.

Fico ao seu lado em silêncio não quero parecer ansioso.

Afasta-se da tela e adentra o apartamento. Faço um gesto para detê-la, mas deixo o braço cair impotente. Vai até o quarto e olha para dentro. A ampla cama ainda desfeita o guarda roupa com um enorme espelho na porta o criado mudo com o radio relógio em cima o tapete a televisão pendurada próximo ao teto, não muda sua expressão. Aproximo-me da porta ao vê-la desaparecer quarto adentro.  Ouço o correr da cortina e o arrastar da janela. O sol constrange meus olhos e isso me enraivece.

Vai à cozinha ao banheiro a área de serviço e olha para fora por um longo tempo através da amurada de azulejos azuis o pequeno jardim onde algumas donas de casa levam seus bebes para tomar sol. Não diz nada apenas olha absorta.

Observo suas costas sua bunda seus sapatos de duende e sinto vontade de me aproximar e encostar meu corpo ao seu. Volto á sala – ao meu ateliê – e me sento no banco frente à tela do banqueiro. A paleta pronta em cima da mesa atrai meu olhar. Seguro-a pego o pincel e me dedico ao trabalho.

Enquanto tento firmar a expressão do cliente ela  surge no corredor . Vem em minha direção enquanto tira as roupas com movimentos ágeis.  Para ao meu lado nua e me olha ruborizada.

– Ouvi dizer que os artistas gostam que suas modelos andem pelo ateliê sem nada, em pelo.

Murmura entre dentes. Não digo nada apenas olho-a com uma meia surpresa no olho esquerdo.

– Quanto?

Pergunta indecisa.

– É Tanto… Mas apenas quando terminar.

Digo-lhe firme.

— Tá bom.

Responde baixo e se dirige a janela abrindo a cortina. A luz jorra para dentro como se saísse de uma mangueira de bombeiro quase derrubando o retrato do cavalete com suas partículas a milhares de metros por segundo.  A onda passa por mim fazendo vibrar as cores do homem semiacabado á minha frente.

– Tem bastante comida na cozinha!

Exclamo esperando criar um vínculo com aquela criatura meio abstrata debruçada na janela. Não me ouve… Ou finge não ouvir.

Volto ao trabalho e me concentro em seu término. Estou atrasado e logo seu proprietário virá cobrar o que foi pago, ainda que somente um terço.

Longos minutos se derrama sobre nós enquanto minhas mãos acabam o retrato. O silêncio me deixa completamente alienado de tudo a minha volta. A surdez do ouvido esquerdo é uma benção.  Levanto-me do banco ao qual estou sentado e me espreguiço alongando o corpo. Nesse momento meus olhos cruzam com o corpo nu de Elisa. O choque daquela visão inesperada cria um vórtice temporal e eu vejo o futuro. Minha obra prima sobre a tela no museu de algum país mediterrâneo está sob uma luz tênue e um grosso vidro protetor. O publico delira e se amontoa para vê-lo. Um ícone de uma geração ainda no tubo de ensaio.

Meus olhos piscam involuntários trazendo-me de volta ao presente e os pequenos sapatos verdes de duende aparecem no meu campo de visão.

– Elisa!

Exclamo atordoado.

Ela se volta e me olha curiosa.

– Sabe cozinhar?

Afasta-se da janela e caminha em direção à cozinha. Ouço barulhos de armário sendo aberto por mãos firmes. A porta da geladeira abre-se e se fecha rapidamente. Latas de mantimentos pratos sujos sobre a pia tudo é mexido vasculhado e deixado em paz.

Sento-me no banco frente à tela acabada com o corpo voltado em sua direção imaginando a cena. Vejo-a nua se movimentando pela cozinha levantando os braços para abrir a porta do armário e percorro mentalmente os músculos do braço os seios a cintura a coxa até finalizar nos sapatos de duende levantados dando impulso ao corpo para alcançar a maçaneta. Jogo uma túnica sobre seu corpo um broche no ombro para prender as pontas do vestuário e vislumbro uma deusa grega em seus afazeres no Olimpo. Minha imaginação abre uma porta e antevejo do outro lado um longo caminho circundado por um jardim magnifico e colorido. Estou pronto para criar…

Elisa surge na porta e vem em minha direção bamboleando como a deusa que acabara de vislumbrar. Sigo seu movimento perplexo.

– Preciso de dinheiro para as compras.

Pronuncia firme, mas com delicadeza. Retiro do bolso uma nota e deposito em sua mão estendida. Ela desaparece no quarto voltando vestida. Seus olhos brilham intensamente. Sai batendo a porta atrás de si e some de minha vista. Uma confusão cinza quase negra me prende no banco. Resta-me apenas uma coisa a fazer: esperar.

Enquanto está fora a campainha toca insistente me tirando do transe. Corro à porta esperando vê-la com as mãos carregadas de pacotes e me deparo com o banqueiro que veio em busca de sua efígie. Convido-o para entrar e lhe mostro a tela sobre o cavalete. Posiciono-me estrategicamente onde possa ver seu rosto no momento que olhar o retrato. Preciso ver sua reação. O brilho de seus olhos e o sorriso largo em sua boca simétrica me deixa aliviado. Ele segura a tela com cuidado retira o envelope do bolso interno do paletó e me entrega. Agradece e se despede saindo do apartamento. Tudo acontece muito rápido e fico triste ao olhar o cavalete vazio mesmo tendo  em minhas mãos dinheiro suficiente para seis meses de arte verdadeira.

A espera me deixa ansioso e resolvo ir às compras. Preciso de material de pintura para meu novo projeto. Deixo um bilhete na porta destrancada e desço a garagem de aluguel do outro lado da rua  em busca de meu Chevrolet.  Percorro as ruas da cidade repleta de pessoas bonitas caminhando apressadas pela calçada. Cruzo a Praça Afonso Pena dobro a Rubião júnior viro na Floriano Peixoto e estaciono frente a papelaria que tenho certeza me proverá de tudo que preciso.

Volto devagar saboreando o prazer de meu novo trabalho. Subo as escadas e não vejo o recado que deixara na porta. Ela está na cozinha, nua. Sobre a mesa legumes e frutas de variadas cores estão esparramadas esperando suas mãos experientes.

Observo e sorrio encantado com o milagre. O lugar está limpo e cheirando a temperos exóticos. Ela corta um punhado de pimentas compridas e vermelhas em cima da tábua sobre a pia. Hortelã, salsa, alho porro e outros condimentos desconhecidos jazem ao lado a espera de ser acrescentado á culinária.  Abro o caderno de desenho que acabara de comprar apanho o carvão e começo a esboçar rapidamente o que vejo.

Ela sorri pela primeira vez desde que chegara e pergunta:

– O que está fazendo?

Olho-a, mas não respondo. Continuo freneticamente o que faço. Percebo que não consigo captar a magia que me impressiona e arranco a folha, irritado,  jogando-a ao chão. Fico alguns minutos olhando-a intensamente até conseguir captar a luz refletida em suas costas pálidas. A sombra prenunciando a subida do morro para formar os glúteos desaparece lentamente ante o brilho fulgurante da luz vindo da janela ao alcançar seu ápice, voltando a surgir na descida repentina  que desliza para as pernas tesas segurando o corpo. A direita flexionada encosta o joelho na porta do armário sob a pia. O entorno com os móveis especialmente projetados para cozinha empurra meu olhar para o piso  de lajotas amarelo ouro que por sua vez cria a atração como um imã pelos  sapatos verdes de duende de Elisa que o segura um milésimo de segundo e o envia ao  vermelho brilhante da pimenta que está sendo retalhada sobre a tábua resvalando pelo impulso para o reflexo policromo dos seus cabelos, girando minha atenção e devolvendo-a ao ponto de partida, a luz refletida em suas costas pálidas. Perco o fôlego nesse giro estonteante que somente me desvencilho quando agarro os lápis de cera que trago no bolso da camisa e retorno ao trabalho frenético. Ela me olha assombrada e gesticulo enérgico para que volte a sua tarefa.

Preencho dezenas de paginas de meu caderno trinta por quarenta centímetros jogando-as no chão uma após outra. Não seguro Elisa em uma posição estática deixo-a livre para se movimentar a vontade enquanto cozinha. O cheiro delicioso do tempero misturado ao assado que ela prepara a salada colorida a toalha de mesa que surgira Deus sabe de onde  tornam-se parte de minha composição transformando os desenhos em algo misterioso e cheio de magia.

Enquanto finalizo o ultimo esboço e o assado busca seu ponto Elisa junta do chão as folhas soltas e as espalha sobre a mesa entre os pratos e talheres. Observa atentamente cada uma delas sem emitir um som. Termino a que estou desenhando e a coloco entre as outras. Aguardo seu julgamento sem pressa.

Passam-se os minutos que vão crescendo lentamente. Ela me olha e vejo o brilho no fundo de suas pupilas da cor da avelã, mas não diz nada. O matiz no papel tem uma vida que nunca vira antes. Percebo algo novo em meus traços. Sinto que atravessei o rubicão e uma nova maneira de fazer arte surge espontânea sob minhas mãos calejadas.

Ela recolhe tudo cuidadosamente e coloca o montículo a um canto. Vira-se e abre o forno. O cheiro espalha-se pela cozinha como uma lufada enchendo minha boca de água. Coloca a bandeja sobre a mesa enche a terrina de feijão a travessa de arroz a salada a farinha temperada o suco natural de laranja e me convida a sentar. Sinto vontade de colocar no papel aquela mesa deliciosa, mas não faço sobrepujado pela fome que me prende com força.

– Posso servi-lo?

Pergunta-me satisfeita com a fome que transparece em meu rosto.

Sem esperar a resposta que ficou presa na garganta pega meu prato e o enche com bocados generosos de tudo e me devolve.

Espero-a se servir numa atitude educada não muito natural no meu dia a dia. Após sentar-se estende a mão para mim e me convida a agradecer. Surpreendo-me, mas estendo minha mão e seguro a dela. A oração é curta. Apenas um agradecimento pelo alimento que está pronto para ser digerido.

A primeira garfada é um choque para meu paladar grosseiro. Desce pela garganta depois de ser mastigada excessivamente. O sabor é divino… Maravilhoso.

– Dizem que Deus se surpreende quando percebe algo bom. Espero que ele tenha se surpreendido com os acontecimentos desse dia.

Ela fala de repente.

– Deus se surpreende? Ele não é o cara que sabe tudo?

Respondo zombeteiro.

– Dizem que por isso mesmo ele nos deu o livre arbítrio. Ele não pode escolher, pois para se ter opção é necessário uma certa dose de ignorância. Então para conseguir se surpreender e sair da apatia ele nos deu a liberdade de escolha e se surpreende quando escolhemos o bem porque sabe que nossa aptidão é para o mal.

Suas palavras rodam em minha cabeça enquanto termino o almoço. Mesmo com o sabor delicioso na boca a raiva cresce em meu peito como bola inflável ultrapassando o limite do corpo e explodindo em  farpas silábicas quebrando o encanto do momento.

– Então todo sofrimento que presenciamos é apenas para esse deus sair da monotonia?

Pergunto deixando transparecer na voz todo ódio que sinto. Encaro-a e percebo o sorriso juvenil em seus olhos.

– Seria incoerente ele se envolver nos nossos problemas.

Responde e se levanta. Recolhe os utensílios da mesa enquanto fico sentado observando seu movimento brejeiro.

– Quero que pose para mim…

Falo rápido numa demonstração inequívoca de que o assunto perdera o interesse.

Deixo-a na cozinha e vou ao ateliê. Retiro os objetos de cima do divã e o arrasto para uma posição onde posso aproveitar melhor a luz que entra pela janela.  Procuro entre as telas encostada a um canto e escolho uma retangular com setenta por um metro e vinte centímetros e a coloco no cavalete. Penso um pouco e coloco-a na horizontal. Usarei como referência um de meus mestres na arte: Francisco de Goya Y Lucientes que é como ele gostava de ser chamado apesar de assinar apenas Goya em seus retratos da nobreza espanhola. Limpo a paleta e deixo-a na mesa. Limpo os pincéis calmamente esperando que termine seus afazeres.

Finalmente ela aparece enxugando as mãos em um pano de prato. Larga-o em cima da banqueta escondendo os tubos de tinta em uma demonstração de rebeldia e me olha com um meio sorriso no canto dos lábios. Estende a mão e a desliza em meus ombros. Caminha até o divã e se deita confortavelmente com um dos braços sob a nuca. Por um momento vejo a maja desnuda, mas não será uma cópia apenas uma referencia.

– Seria incoerente?

Pergunto a queima roupa açulando-a e fazendo-a retesar os músculos da face.  Dou uma risadinha de deboche. Pego o pincel e rapidamente imprimo na tela seu rosto mostrando toda confusão que agita seu íntimo.

– Nem mesmo ele pode mudar as regras.

Responde como se isso decidisse tudo.

– Ora! Mas ele não é “o” Deus?

Pergunto em tom de troça.

– Por isso mesmo! Se não fosse assim seria outra coisa menos Deus.

– Então você não acredita em milagres?

– Você acredita nas leis naturais? Na gravidade, por exemplo?

Pergunta excitada.

– Claro!

Pego o pincel e o jogo para o alto. Ele vai até certa altura e depois despenca batendo no assoalho e sujando de sépia o chão encerado.

Ela Sorri balança a cabeça e me olha perplexa.

Você acredita que o avião rompe essa lei natural? Que o avião é uma exceção?

Pergunta e senta-se no divã.

– Deite-se!

Ordeno irritado. Pego a tela e levo até ela. O rosto com uma expressão animalesca e o corpo contorcido de uma mulher endoidecida a faz gargalhar. Acho graça de seu jeito infantil de me dar às costas. Volto ao cavalete limpo a tela com um pano úmido em solvente vegetal e deixo-o secar por alguns minutos enquanto  tento mantê-la excitada.

-Sim! E daí que o avião supera a gravidade?

Ela se volta séria e responde:

– Ele vence a gravidade porque usa a tecnologia apropriada.

Deita-se na posição inicial e olha para o teto, absorta. Espero seus músculos relaxarem e com pinceladas rápidas transformo-a em um anjo deitada de costas ás margens do rio Eufrates em pleno jardim do Éden. Do outro lado do rio Deus de calção de banho ensaia um mergulho enquanto a bicharada brinca em volta e Adão e Eva faz amor debaixo de um sicômoro. Somente o anjo pode ser visto em detalhes o entorno é apenas sugerido apesar de inconfundível.

Finalizo o quadro, assino me proibindo de novos retoques cubro a tela e me levanto do banco onde ficara por quase cinco horas. Meu corpo dói e preciso de algo para beber. Vou ao quarto e trago um lençol cobrindo o corpo de Elisa que dorme tranquila. Abro a porta desço as escadas e saio para a rua sentindo o dia se esvair enquanto a noite se aproxima trazendo consigo a alegria e o mistério.

Volto após caminhar por meia hora pelas ruas do bairro e trago comigo uma garrafa de vinho. Subo as escadas cantarolando uma musica que ouvira de relance pela janela do carro que passara por mim pouco antes. Não me lembro de quem é, mas me trazem lembranças calorosas.

Abro a porta e entro no ateliê. Elisa não está no divã. O pano que cobria o quadro está sobre o banco e não vejo nenhum bilhete me avisando de sua ausência.

Meu coração aperta no peito. Vasculho a casa  a sua procura. Sinto-me perdido. Sua presença apesar do pouco tempo já me é indispensável.  Encosto-me a parede do corredor ofegante e de repente ouço o som de água caindo do chuveiro. Precipito-me na direção da porta e estanco há poucos centímetros de abri-la. Recomponho-me e bato levemente.

– Espere um pouco já vou sair.

Ela grita para mim do outro lado.

Aliviado retorno ao ateliê e apanho a garrafa de vinho que deixara sobre o pano em cima do banco frente a tela. Levo-a para a cozinha e abro para que seu conteúdo seja arejado. Retiro o assado do forno e corto um pedaço. Como com prazer.

Entretido com a comida não percebo que ela está ás minhas costas e me assusto quando ouço sua voz.

-Terminamos? Posso ir-me embora?

Fala como se saísse de um túnel.

Volto-me e a encaro. Está linda com o vestido solto. O cabelo molhado caindo sobre os ombros o rosto lavado a boca vermelha recém-pintada. O perfume de sabonete misturado ao shampoo me excita. Giro o corpo escondendo minha surpresa ao vê-la como uma mulher. Não é isso que pretendo. Ela é apenas uma modelo. Um ser fora da minha espécie que está ali com o único propósito de fazer minha arte evoluir. Caminhar para um novo patamar.

– Claro que não!

Exclamo enfático.

– Caso queira pode arrumar o quarto de hóspedes para passar a noite. Temos muito trabalho por fazer.

O silêncio a seguir me enche de apreensão. Espero sem me voltar não quero olha-la antes daquela sensação que tomou conta de meu corpo há pouco e que insiste em mexer com meus nervos e músculos se esvazie.

– Está bem.

Ouço seus passos se afastando e me volto a tempo de vê-la dobrar o corredor em direção ao quarto de hospedes. Vou a seu encalço e a pego frente ao guarda roupa a procura de algo. Convido-a para tomar o vinho que comprara e ela me olha de uma maneira impenetrável. Confundo-me por não conseguir interpretar seu olhar.

Deixo-a sozinha e volto ao ateliê. Coloco um CD para tocar e me sento no divã. Não demora muito ela surge na sala e se senta ao meu lado. Pego a taça com o vinho e entrego em suas mãos. Percebo um clima de constrangimento entre nós. Não consigo entender o motivo considerando que passamos o dia juntos.

– Quer dizer que para acontecer um milagre precisa de tecnologia?

Pergunto em tom de troça procurando uma aproximação. Ela me olha fixamente com o semblante anuviado e me faz sentir um tolo. Meu sorriso é forçado sinto meu rosto rubro.

– É curioso como as pessoas não compreendem o sentido das palavras. Você não conhece a definição de tecnologia, não é mesmo? Ou no mínimo é incompleta…

Abaixo a cabeça envergonhado. Ela se levanta e pega o dicionário Aurélio, que sempre acompanha minhas mudanças, na estante. Abre-o e procura a palavra me entregando em seguida apontando para a definição que se aplica melhor a sua intenção. Leio: Conjunto de conhecimento. Em seguida está escrito: princípios científicos que se aplicam a um determinado ramo de atividade.

– Creio que somente conhecia esta outra definição.

Tento explicar na esperança de esconder minha ignorância.

– Não se preocupe. A grande maioria não conhece nem a definição das palavras mais simples e corriqueiras. É um dos motivos de existir tanta confusão entre as pessoas. Erro de interpretação.

– Quer dizer que precisa de um conjunto de conhecimento para se realizar um milagre?

Pergunto tentado esquecer minha gafe.

– Exatamente! Como o projetista do avião precisou aplicar um conjunto de conhecimentos científicos para fazê-lo quebrar uma lei natural também é preciso aplicar um conjunto de conhecimento espiritual para quebrar outra lei natural. O milagre como o avião está quebrando uma lei da física. Deus quando fez o mundo físico colocou leis imutáveis, mas que podem ser quebradas em situações especiais.

Bebo devagar um gole do vinho e seguro a taça nos lábios por longos segundos. Acho estranho seu jeito de olhar os mistérios.  Lembro-me que não a conheço ela ainda não se abriu como as outras é muito reservada.  Por onde será que tem andado? Onde aprendeu estas coisas tão fantásticas? – pergunto a mim mesmo curioso.

Ficamos longo tempo em silêncio apenas saboreando o vinho. Observo-a com frequência e quando nossos olhos se cruzam abro um sorriso sinalizando que estou feliz em tê-la ali comigo. O dia acabara e sinto como se a conhecesse  desde  sempre. Agora apenas quero terminar meu vinho talvez dançar uma ou duas musicas e quem sabe o que pode acontecer. Afinal a noite é apenas uma criança…

Continua…

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