Sobre quadrinhos e memória

Hoje, dia 22 de abril de 2020 eu recebi um belo presente. Os presentes são coisas interessantes. Porque o presente vale mais quando ele não é só um objeto a ser ofertado, uma coisa, algo que se dá. O presente às vezes é uma força. Sim… uma força para além da coisa, o presente acaba se mostrando mais valioso pela relação de sentimentos, memórias, desejos que ele incita em quem o recebe. O presente quando é bom é como uma onda que varre tudo, nos atira na areia exaustos…mas de olhos brilhantes. Pois bem, hoje eu recebi um presente desta magnitude da minha sobrinha Tamara

Uma caixa de papelão cheia de gibis antigos. Tenho 52 anos, e ler gibi pra mim era uma coisa sagrada, fascinante, desejada… todo mês eu esperava que o meu pai ou minha mãe fossem para o centro. Dia de pagamento, quando voltavam sempre traziam um gibi, eles escolhiam e traziam… Eu morria na espera. Angústia de criança é facada no peito, é drama, é choro…

Mas qual o problema em ganhar alguns gibis? Eis a questão! Não são gibis. Não são meramente gibis… são minhas memórias de infância!!! É o “meu tempo perdido” encontrado, não nos biscoitos Madeleine e em uma xícara de chá sorvido pelo genial Proust, nem no ensopado de legumes que Monsieur Ego toma na animação Ratatouile, referência também a Proust e à relação do tempo tratada em sua obra. Como estou lidando com gibis, nada mais próximo do que animações, e também faço essa lembrança por ser esse tipo de  desenho animado mais conhecido pelos jovens que leem gibis. Ou aos nem tão jovens…

Minha relação com a leitura começou com os gibis, lembro-me do primeiro, uma revista bonita e bem desenhada, colorida. Xerife King. Da editora Bruguera. Um western. Eu lia e relia aquele livro como se fosse uma relíquia. Depois minha mãe a dona Vanda me apresentou o primeiro herói dos quadrinhos que conheci O Fantasma. Adorava ver o Fantasma esmurrar os inimigos e deixar a marca da caveira no rosto deles. Depois surgiram o mágico Mandrake e Lotar eram publicados pela Editora RGE na época, depois estes heróis passaram para a Editora Globo.

Mas minha febre por gibis me fez ler quadrinhos mais antigos como os da editora EBAL. Lembro que achava esses gibis em bancas de revistas usadas em Pelotas. Era um garimpo, foi nessa época que comecei a ler de tudo, De Tarzan a Zé Carioca, de Brasinha e Mindinho a Super-Homem (em preto e branco) Muitos gibis da minha época eram em preto e branco. Lembro que uma vez consegui um Batman em espanhol…uau que relíquia!!! Tex, Zagor, aqueles livros de final de ano da Disney que sempre começavam com “os” isso ou “as” aquilo. Eram enormes, “Os detetives, As bruxas, Os repórteres…

O mundo era diferente. A velocidade era menor. Nossos corpos infantis tinham tempo de sentar, deitar e passar horas lendo, colecionando, desenhando… Cada revistinha tinha gosto de pão com manteiga, café preto, pirão com leite em pó, farelo de bolacha com açúcar e Nescau. Cada gibi precisava ser carregado, pois ele precisava irradiar sua força na escola, na sala de aula… uma puxadinha sem que o professor visse. No pátio. Alguém pedia pra ver, conversávamos sobre as revistas, sobre as personagens, sobre as coleções. Trocávamos revistas. “Te dou dois Pato Donald pelo teu Heróis da Teve!” Não conseguíamos dormir sabendo que no outro dia na escola outras crianças iam levar gibi e que a “gente” podia trocar. Meu Deus… que coisa boa!!! “Mas o teu tá rasgado.” “Mas é melhor que o teu!” E assim a gente ia…

E os amigos? Criávamos grandes amizades nesta relação que nos unia. Lembro-me de alguns. O Carlinhos e o Daniel eram os que tinham mais revistas. Nós saímos de casa com sacolas cheias de revistas e íamos batendo de porta em porta pra trocar. Uma vez o Carlinhos e eu fizemos uma maratona na cidade de Pedro Osório. Ele conhecia muita gente, eu era novo na redondeza. Batíamos nas portas, chamávamos os meninos e ele me apresentava: “E aí “fulano” esse aqui é o Ronie, ele tem um monte de gibi e quer trocar… tá a fim?” E sentávamos na calçada e demorávamos horas fazendo as negociações.

Hoje quando peguei as revistas que a Tamara me deu parecia que eu estava voltando para aquela época. Algumas revistinhas eu já havia lido, lembrava das capas, lembrava delas nas bancas… e olha que são revistas bem antigas. Percebi que as revistas da Disney não estavam nas bancas mais. Fui pesquisar e descobri que desde 2018 a Disney não publica nada no Brasil, parece que agora outra editora está começando este trabalho… Culturama parece.

Nestes dias difíceis de doenças, de mortes, de políticos tacanhos e em que os trabalhadores perdem direitos a toda hora, me sentei depois de um banho e fui ler um Zé Carioca dos anos setenta. Li uma historinha do Lobão e do Lobinho com um sorriso estranho no rosto… um sorriso a la Proust comendo seus famosos biscoitos.

Talvez esse distanciamento e esse isolamento sirvam para que mergulhemos um pouco mais em nós mesmos. Nas relações e nas forças que nos formaram e nos fazem ser o que somos. Naquilo que poderíamos ter sido, naquilo que éramos… Pensar com intensidade é muito arriscado, mas é preciso. Perceber as transformações sociais que nos produziram subjetivamente e que nos produzem diariamente. Sentir a velocidade enlouquecedora do tempo a nos estapear o rosto e nos sugar os sorrisos, os prazeres e os desejos… Sentar no sol e sorrir com um IAC, IAC do Pateta pode parecer perda de tempo, mas na verdade é ganho de memória. É ganho de rostos e imagens que nos circundavam de sensações que andavam ao nosso redor… Deitar na cama no inverno, puxar um gibi, ficar bem abafadinho e ler para além da leitura. Atravessar uma fina linha que separa o possível do impossível.

Lembro uma vez que minha mãe foi na feira. Uma enorme feira de rua na Avenida em Pelotas, eu fui só pra comprar um gibi. Homem Aranha, lembro bem. Também lembro da capa, era o homem Aranha lutando com o Rei do Crime, que na minha época era o Chefão. Fiquei tão entretido na leitura que acabei dando de cabeça em um poste, isso me custou uma zombaria familiar por muito tempo.

E eu tinha muito gibis, colecionava tudo. Mas nada é eterno, quando nos mudamos para Pedro Osório veio a enchente e levou tudo. Sobraram alguns…mas nada foi como antes. A água tinha levado uma parte do meu gosto por gibis. Depois eu fui crescendo, lendo outras coisas, o tempo, ou a falta de tempo me estapeando a cara e exigindo velocidade, exigindo coisas…

Fiquei tão feliz com os gibis que ganhei que os acondicionei todos em saquinhos, não são os ideais para isso, mas vão quebrar o galho por enquanto, juntei alguns que eu ainda tinha e arrumei um lugarzinho melhor para eles na minha biblioteca. Estou pensando seriamente em voltar a coleciona-los.

Obrigado Tamara. Um abraço do Pateta, do Mickey, do Cebolinha, do Tio Patinhas, do Bolinha, do Pernalonga, da Mônica, do Gasparzinho… Ficaremos bem.

 

Sobre Ronie Von Rosa Martins 25 Artigos
É mestre em Educação pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (2012), especialista em Literatura Contemporânea Brasileira pela Universidade Federal de Pelotas(2002) e também especialista em Linguagens Verbais e visuais e suas Tecnologias pelo IFSul-Pel.(2008). Atua como professor na rede Estadual da cidade de Cerrito e na rede municipal da cidade de Pedro Osório, Rio grande do Sul. Tem experiência nas áreas de Literatura e Formação de professores, com ênfase na articulação entre Literatura e filosofias da diferença.

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