Sobre temporais e jardins

Até hoje me lembro de uma longa caminhada que o poeta Glauco Mattoso e eu fizemos, certa vez, pela noite paulistana. Fomos de seu apartamento, na Vila Mariana, até a Pizzaria Chaplin no mesmo bairro. A distância era considerável, aproveitamos então para falar sobre alguns assuntos que tínhamos em comum: poesia, humor, música, a coluna que ele escreveria num jornal que eu editava (O Matraca).
Num determinado instante da peripatética andança, Glauco me revelou sua admiração pelo trabalho de Sérgio Sampaio. Para mim, até ali, o artista era apenas o criador da popularíssima Eu quero é botar meu bloco na rua (1972). Saí do papo, no entanto, quase correndo a uma loja de discos para adquirir os álbuns Tem que acontecer e Sinceramente. O que fiz dias depois, aliás.
Foi aí que atentei para o espírito independente de Sampaio, seu estilo de composição autorreferencial único, que não se dobrava pela fugacidade do agora. Em suma, vivenciei uma obra atemporal.
Essa semana recebi da editora capixaba Cousa um livro que nunca imaginei ter em mãos: o Song Book de Sérgio Sampaio. Acredito que, só mesmo uma casa de livros atenta às produções excelentes deixadas para trás, teria o arrojo de colocar nas prateleiras uma produção assim.
Como se sabe, Sampaio evitava a pecha de músico, assim como não comungava com os deveres profissionais exigidos pelas gravadoras ao artista recém-gravado. Vivia num mundo que, como escreveram Wilberth Salgueiro e Jorge Verly na apresentação do livro:
“…ofereceu-lhe um tão vasto quanto bárbaro cardápio, indo da saída de Cachoeiro do Itapemirim à fome carioca, das noites mal dormidas em bancos de praça ao estrondoso sucesso musical, das exigências mercadológicas por novos “blocos na rua” ao ostracismo midiático…Sampaio foi capaz de resistir e, jungindo barbárie e verdade, fez de suas canções um retrato íntegro das catástrofes que o cercaram. Ou, nas suas próprias palavras: “naquilo que pintar eu tô, minha nêga / mesmo se a barra pesou”.
É justamente aí onde reside a pertinência do song book. Não estamos diante da literatura musical de um astro do mainstream. Mas, sim, de uma obra recheada com as invenções de um autor que se ligou visceralmente à poesia marginal. E em todas as suas pautas: drogas, loucura, morte, repressão ditatorial, amor e solidão.
Tem sido uma catarse folhear essas páginas, com todas as notas e palavras do compositor. Em especial pela minha identificação com sua trajetória, já que trilhei vereda semelhante com o grupo Língua de Trapo. Como o título de seu elepê Tem que acontecer, a promessa também não se cumpriu conosco. A indústria fonográfica pouco nos divulgou, a mídia não tocou, a imprensa quase nada comentou. Talvez por isso, até hoje, cantarolo os versos da canção de Sérgio Sampaio, Ninguém vive por mim:
“Fui tratado como um louco, enganado feito um bobo / Devorado pelos lobos, derrotado sim / Fui posto de lado em tudo, um marginal enfim / O pior dos temporais aduba o jardim”
Ouvir Sérgio Sampaio é descobrir que, mesmo não botando o bloco na rua, o jardim sempre pode florescer.
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(Texto publicado no Estadão)
Sobre Carlos Castelo 49 Artigos
Jornalista, poeta, humorista profissional diplomado. Um dos criadores do grupo musical Língua de Trapo.

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