Requiem ou o sorriso maldito – de Rui Freitas

Esta é uma apreciação informal e empírica, pelo que as afirmações aqui expostas e as reflexões feitas são de carácter livre e fundamentadas apenas na intuição da leitora.

Qualquer semelhança com uma resenha ou uma crítica literária, no sentido académico do conceito, é mera coincidência.

Depois de Narrativas do Lado Contrário, dado à estampa em 2018, Rui Freitas volta a surpreender-nos, desta feita com um texto poético que se estende por todo o livro, um único poema sem pontuação visível, ao qual o próprio autor atribui uma “pontuação fonética”, ou seja, “quebras rítmicas, silábicas e por isso sonoras, das palavras, bem como as mudanças de linha e finalmente o espaço entre linhas que dita as pausas e suspensões que a pontuação faria”, como nos explica numa conversa informal.

Assim nasceu esta quase resenha com laivos de crítica não assumida, pois na troca de impressões espontânea se revelam pormenores que numa entrevista formal ficariam por dizer. É preciso deixar o autor falar sobre a sua obra ao ritmo que entende, usando essa mesma pontuação fonética que pontua a sua narrativa. Li algures que existe uma fronteira entre ficção e poesia: nesta obra, conquanto se trate de um texto eminentemente poético, entendo que encerra uma narrativa de tudo quanto o autor já viveu, leu e sonhou.

As numerosas referências a outros textos, a mitologias diversas, a autores e universos paralelos estão compiladas na última parte do livro, onde, em jeito enciclopédico, o autor desdobra as notas de rodapé num apontamento explicativo global de grande utilidade, como uma só nota da redação, que permite uma releitura do texto, chave na mão. Então, depois de invadir o texto toscamente como que pontapeando uma velha porta de madeira, voltamos a lê-lo de forma mais confortável com os códigos de leitura fornecidos pelo seu autor. Não são imprescindíveis, porém acrescentam conteúdo e proporcionam outra dimensão à compreensão do texto, que ficará no entanto sempre aquém daquela que Rui Freitas tinha em mente quando o concebeu. Mas os autores sabem que as leituras são díspares e que nenhum leitor se aproximará da sua própria visão ou intenção; para isso escrevem para fora e não para dentro, por isso se dispõem a partilhar um pedaço de si mesmos com estranhos, sendo que agora somos membros de uma mesma fraternidade, cada um ouvindo Requiem ou o Sorriso Maldito com uma sonoridade diferente.

Creio que os recursos de editor experiente estão patentes também na arrumação e organização deste texto; Freitas tem múltiplas facetas que não atuam de maneira estanque, antes se amparam umas às outras. O artista plástico, o esteta, o editor atento ao pormenor, o leitor obsessivo, juntam-se para nos proporcionarem um texto com a necessária e expectável loucura no conteúdo mas uma forma equilibrada, estruturada, que não foi nunca deixada ao acaso.

Quanto ao livro, há temas que me parecem evidentes e que ressaltam da leitura global: o isolamento, a introspeção, a solidão, o despojamento, a errância, a religiosidade e até a luxúria; mas também a música e a morte, o paraíso, não necessariamente por esta ordem, ainda que neste caos ordenado não seja fácil encontrar uma hierarquia de sentimentos ou emoções — eles aparecem e desaparecem como rajadas de vento entre um parágrafo e outro.

Ainda nas dedicatórias o autor faz um brinde simbólico exaltando a figura de filósofos, como Epicuro, e através dele a sua noção de felicidade, de escritores conotados com diversas escolas, de pintores e músicos/interpretes (Leonard Cohen ou Tom Waits, com as suas vozes roucas e intrigantes), demonstrando assim um gosto diversificado, abrangente e universal, com paragens obrigatórias no romantismo mas também no realismo e no surrealismo e até em protagonistas de movimentos mais radicais e esteticamente transgressores como Bukowski.

A invocação destes nomes parece-me claramente vinculada à textura do poema, no qual acabam por surgir, senão mencionados explicitamente, visíveis à transparência de um intervalo entre linhas.

Percorrendo o poema permito-me fazer algumas pausas; e o livro abre com estes versos perturbadores:

“(…) Danço o delírio do meu ócio meu segredo/ meu degredo/ tormento calado benzido/ num Éden imitado contrafeito/ conciliado eterno/ remisso e consagrado (…)”.

Mais abaixo lemos: “(…) onde fui dono deste universo todo (…)” e inevitavelmente lembramo-nos de Proust e de À la Recherche du Temps Perdu. Já as passagens “(…) abjuro a fé que troco por nada (…)” e “(…) por entre as colunas/ de estátuas inúteis e perecíveis/ e usurpando a honradez dos mortos (…)” afiguram-se-me como manifestações de desencanto, descrença e rutura em relação ao historicamente imposto ou globalmente aceite. No trecho abaixo, que remete para o título, sentimos o afã de denunciar a hipocrisia social: “(…) no fecho do início/ aclamado/ por equinócio da farsa fingida tingida/ mascarado de sorriso maldito distraído (…)”. Outrossim, o eu lírico confunde-se e funde-se com a tela, fazendo referência à pintura, omnipresente na obra de Freitas: “(…) e por dentro da tela serpenteio (…)”. E encontramos palavras de auto contrição em “(…) pecados de Deus resíduos de mim/ excessos e soberba(…)” que nos conduzem a um ambiente de filme noir: “(…) empurrou o croupier pela rua negra da sorte (…)”. Mas o autor que afirma: “(…) renego Epicuro (…)”, saúda-o na abertura da obra (brindemos pois ao adversário, ou àquele cujas premissas, embora merecedoras da nossa admiração, podem ser refutadas). “(…) fadado a devorar/ a orquestra/ e o coro/ e ele/ e a desligar/ o fado/ e o rio/ e a valsa/ e a fundir/ o pregoeiro/ e o pintor/ e eu/ e o Armando/ e o quadro/ e os fariseus/ e o maestro(…)” é um trecho que nos traz polissíndetos com abundância: servem de veículo à extensa enumeração de verbos e nomes, como vagões de uma longa composição. “(…) e o cão/ e o louco abençoado/ e as memórias/ e eu e eu (…)” representariam a sua conceção do universo, do outro e de si mesmo, enquanto ser material e feito do acúmulo de vivências. “(…) por ser/ eterno/ repetir/ o sorriso maldito (…)” aflora a noção da dimensão tautológica da vida.

Volto ao autor e pergunto-lhe se escrever prosa ou poesia é uma decisão sua ou, ao contrário, uma avalanche exterior à qual se submete. Talvez não o tenha perguntado exatamente assim mas era essa a intenção: “é como entre escrever e pintar, depende do momento, do impulso, da disposição” — explica-me. E remata — “Este poema começou a ser escrito há cinco ou seis anos, e ao longo do tempo foi retomado e revisto repetidas vezes até à versão final”.

Requiem ou o Sorriso Maldito teve como ponto de partida uma canção de Leonard Cohen, como frisa o autor nas notas finais. Esperemos que este livro possa, do mesmo modo, espoletar as mais diversas emoções e questionamentos nos leitores e ter um impacto decisivo nas suas existências.

Luísa Fresta

Página de divulgação do livro:

https://www.facebook.com/requiemouosorrisomaldito/

Sobre Luisa Fresta 24 Artigos
Luisa Fresta Nascida em Portugal, viveu infância e adolescência em Angola. Dedica-se sobretudo à escrita, sob a forma de contos, crónicas e poemas. Escreve regularmente em vários jornais, revistas e sites. OBRAS DA AUTORA: BURRO, SIM SENHOR! (Editorial Novembro, 2021), SAPATARIA E OUTROS CAMINHOS DE PÉ POSTO (Editorial Novembro, 2021), A FABULOSA GALINHA DE ANGOLA (Editorial Novembro, 2020), MARÇO ENTRE MERIDIANOS, reedição (Livros de Ontem, 2019- Portugal) e primeira edição (MAAN, 2018 - Angola/ Prémio "Um bouquet de rosas para ti"), CONTEXTURAS (Livros de Ontem, 2017)

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*