A ESPERA

Todos os dias consultava a sua caixa de correio. Porém, devido a um qualquer erro temporário de acesso, durante várias horas não pôde verificar as novas entradas. Quando finalmente o fez, mais por rotina do que por interesse real, quase não reparou naquele mail insólito, sem título, que lhe chegou de um remetente pouco frequente por aquela via.

Isa era uma pessoa metódica e ordenada. Alguns colegas achavam-ma obsessiva e diziam-lho com frequência, carinhosamente, mais para a embaraçar do que para criticá-la. Depois de descartar os numerosos spams e as mensagens reencaminhadas que apagava sempre sem ler, abriu finalmente aquela que viria a revelar-se a informação mais importante do dia.

Embora não tivesse qualquer título, Isa acabou por descobrir um minúsculo texto que se resumia a duas breves e aterradoras palavras: «chego hoje». Por instantes chegou a duvidar da sua lucidez; com uma frieza que lhe era estranha, fechou a caixa de correio e voltou a abri-la: lá estavam as duas mesmas palavras lacónicas e um anexo com um cartão de embarque. Percebeu então que o seu “contacto” chegava nesse mesmo dia, às 10h55, em proveniência do aeroporto Charles de Gaulle, de Paris. «Terminal 1, voo AF 1024, companhia Air France», repetiu várias vezes antes de recuperar a sua pulsação habitual. Olhou para o relógio e verificou, apavorada, que eram 8:12: dispunha exactamente de duas horas e quarenta e três minutos para tratar da sua higiene, voar para as «Chegadas» e esperá-lo, mordendo-se de impaciência dissimulada, como tantas vezes haviam imaginado. Fingindo ler um livro sem entender uma única palavra, ajeitando o cabelo, cruzando e descruzando as pernas, olhando sem ver os transeuntes e as famílias que se reuniam com alarido. Quase se deixou tomar pelo pânico pensando na depilação que precisava já de um leve retoque, na pele que de repente lhe pareceu assustadoramente ressequida, nas olheiras profundas e numa teimosa borbulha que despontava, vermelha e ameaçadora, na face esquerda. Os abdominais não tinham ainda atingido o ponto desejado de hipertrofia, o cabelo não ostentava o brilho costumeiro e a sua insegurança pré-menstrual não ajudava em nada! Depois de alinhar sobre a cama quatro indumentárias diferentes, (qual delas a mais inapropriada), decidiu-se finalmente por uma saia de ganga de corte muito feminino, algo rodada e com um folho discreto, moderna e confortável, à qual juntou uma blusa acetinada verde água que fazia sobressair o seu bronzeado incipiente. As outras roupas jaziam despeitadas pela cama: demasiado formais, apagadas ou pouco citadinas, por algum motivo teriam sido dispensadas daquele dia invulgar. Olhou de novo para o relógio: 8h31. Um pouco mais confiante, disse então para consigo que ainda sabia gerir o tempo sob stress, mesmo que isso resultasse numa maquilhagem mais imperfeita ou que se visse obrigada a deixar um ou outro frasco de creme aberto sobre a cómoda. Os cheiros femininos espalhavam-se ainda pelo quarto quando entrou no táxi em direcção ao aeroporto de Lisboa. O taxista, reservado como poucos, proporcionou-lhe o recolhimento mental necessário para pôr em ordem todos os acontecimentos que tinham antecedido o inevitável encontro com o seu “contacto”, dentro de horas, que se transformavam em minutos a uma velocidade assustadora. Ismael era então um actor medianamente conhecido no teatro europeu e também um encenador e guionista muito respeitado no seu país. Reservado, fechado e volúvel, tinha-a conhecido durante uma entrevista on-line. Vinham mantendo contacto próximo e regular no universo virtual, pensado encontrar-se um dia, quando ambos sentissem esse apelo inadiável e consideravam-se carinhosamente o “contacto” um do outro.

Ele dizia-lhe: «Quando a temperatura subir acima dos 35º em Paris, podes contar comigo em 48h!». Ela ria-se, contente com as brincadeiras inconsequentes, com as cenas que representavam juntos: a do encontro no aeroporto, a das peripécias no comboio para Évora, a dos passeios em Montmartre e a dos jantares no «13ème», situado na margem esquerda do Sena; pensou nas personagens e nas histórias que partilhavam madrugada adentro – A Bela e o Monstro, de Cocteau, encabeçando essa eclética lista – e nos guiões que escreviam a 4 mãos. E não o levava a sério, nunca, flirtando apenas com o destino.

No entanto, essa ridícula profecia estava agora prestes a cumprir-se, exactamente como ele tinha preconizado. Isa pagou a conta do táxi maquinalmente sem esperar pelo troco e entrou no espaço reservado à espera dos passageiros. O voo estava atrasado: «Que alívio!», pensou. Aqueles 10 minutos imprevistos permitiam-lhe reflectir sobre os vários cenários possíveis, num guião que ainda estava por escrever. Conhecia-o, até certo ponto: era um homem alto, confiante, de personalidade dominadora, com olhar incisivo, algo rude mas também excepcionalmente sedutor e envolvente, de onde em onde. Os seus passos eram seguros e amplos, as suas mãos esguias de uma beleza rara. Possuía o dom de dominar o espaço que o rodeava e a assistência rendia-se sem reservas ao timbre grave e invulgar da sua voz. Num segundo podia transformar-se na besta que às vezes parecia repousar, mal dominada, dentro da sua natureza selvática, o que só lhe conferia maior encanto e mistério. Estar perto dele significava viver em constante adrenalina, em permanente desassossego: recusava rotinas rígidas, frases feitas e comportamentos previsíveis. Tinha os seus próprios talismãs, ritmos e rituais, como o cachimbo de couro e cobre comprado num mercado da sua cidade natal, os cigarros enrolados, os vinhos escolhidos a dedo (millésimes) e a cozinha sofisticada e demorada; e impunha-os, mesmo involuntariamente, a quem com ele privasse ou se movesse nos seus círculos mais próximos.

De repente o olhar de Isa parou num homem alto e atraente que descia a rampa com pouca bagagem, envergando um casaco de malha desportivo e um cap beige. O homem olhou-a com algum interesse, ela procurou os óculos na carteira, mas logo em seguida o seu olhar atravessou-a e foi poisar numa mulata vistosa que lhe acenava com os óculos de sol. «Falso alarme», pensou, sorrindo para dentro, e chegou a agradecer esse momento de paz, antes do decisivo encontro. Durante mais de meia hora viu desfilar diante de si toda a espécie de passageiros, muitos homens sós, alguns com o mesmo tipo físico daquele que esperava. Por fim, ao cabo de uma longa espera, desistiu de continuar a iludir-se: teria ele viajado sob disfarce, para poder ver sem ser visto? Teria perdido alguma mala? Com a cabeça confusa e sentindo uma tontura próxima do desmaio, julgou sentir um cheiro a um perfume conhecido. Dirigiu-se ao café mais próximo, a alguns metros apenas.

– Faz favor…- o garçon empertigado impacientava-se com o seu olhar ausente.

Finalmente conseguiu balbuciar:

– Uma bica cheia, por favor.

Entretanto já o empregado se dirigia ao cliente atrás de si, cuja sombra a incomodava pois não encontrava as moedas no seu pequeno porta-moedas de veludo negro.

– E o senhor?

– A mesma coisa que a senhora – respondeu a voz grave atrás dela, enquanto lhe colocava a mão sobre o ombro esquerdo e lhe afagava timidamente o braço.

Sobre Luisa Fresta 24 Artigos
Luisa Fresta Nascida em Portugal, viveu infância e adolescência em Angola. Dedica-se sobretudo à escrita, sob a forma de contos, crónicas e poemas. Escreve regularmente em vários jornais, revistas e sites. OBRAS DA AUTORA: BURRO, SIM SENHOR! (Editorial Novembro, 2021), SAPATARIA E OUTROS CAMINHOS DE PÉ POSTO (Editorial Novembro, 2021), A FABULOSA GALINHA DE ANGOLA (Editorial Novembro, 2020), MARÇO ENTRE MERIDIANOS, reedição (Livros de Ontem, 2019- Portugal) e primeira edição (MAAN, 2018 - Angola/ Prémio "Um bouquet de rosas para ti"), CONTEXTURAS (Livros de Ontem, 2017)

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