Holy Night

 

I
Quanto ao acontecido, não pairava nenhuma dúvida: o Menino Jesus de gesso tinha virado os olhinhos na minha direção, dando ainda por cima um risinho de canto de boca. Estávamos os oito na igreja, não podia fazer nada a não ser esperar o fim da missa pra contar a todo mundo. De joelhos na hora da Consagração, eu desacreditava e pedia ao Menino Jesus de verdade pra que o seu clone do presépio parasse de brincadeira. Mas não. Olhava para a manjedoura e ele me encarando. Às vezes até dava uma piscadinha, franzia o cenho, mexia as pernas no berço de palha. Eu apertava forte a mão de minha mãe, disso sempre irei lembrar, me agarrava febrilmente à sua certeza de que tudo estava bem.

II
A lata semiaberta de pastilhas Valda no criado-mudo: aquilo era a cara dele. O enxofre do polvilho Granado se via no tapete e empestava o ar. Se velhinho tem cheiro, cheiro de velhinho é aquele, de talco antisséptico. Vovô Noel de costelas visíveis e peles flácidas, em suspensórios e camisa regata no casulo do seu quarto, deixava o leito em direção à porta, lento como o badalar dos sinos.
– Oi, vô. Deixa que eu te ajudo, espera aí.
– Deus te abençoe, menino. Que o seu neto também seja carinhoso com você, viu?
Lembrei das lições do catecismo e me senti um escoteiro, ciente do dever cumprido.

III
Não, não naquele dia a nuvem de cebola refogada, o enxágue burocrático da louça, as coisas todas em seu lugar e um lugar certo pra cada coisa. Não naquele dia a lida doméstica sem gradientes de espanto. Não naquele dia o arrastar na marra dos ponteiros do cuco, mostrando o tempo que faltava para levar as cadeiras à varanda e jogar fora toda a conversa que houvesse no mundo. Não naquele dia. Não na noite de Natal.

IV
No olfato se impunha o assado e seu perfume. Era só ele e mais nada, das seis e meia em diante. Uma coisa de não resistir, de ter de abrir o forno às escondidas e furtar a casquinha régia, a mais cobiçada do bicho, onde a marinada da véspera tinha feito repouso e deixado seu suco.
Papai Noel triunfa e ri seu riso balofo, abre sendas de alegria no chacoalhar da pança. Havia o Natal e havia a urgência dos que não podiam parar apesar dele. Havia o André da Botica Almeida & Filhos, em plena noite de 24 a correr vila em cima da monareta, o estojinho de injeção e o garrote tripa-de-mico na garupa.
– Prefere no braço ou no músculo?
Dizia polidamente músculo, às vezes região glútea, dependendo da intimidade com o doente. Concluída a ronda dos moribundos, como seria o Natal do André? Indo um pouquinho mais longe: rezada a Missa do Galo, como seria o natal do Papa? Com quem irá cear o Pontífice e o que terá sobre a mesa?

V
O peru se fatia como se em fatias estivéssemos destrinchando as graças e desgraças da vidinha de costume.
Castanhas sobre a mesa, castanhos são os olhos de quase todos ao redor, pastores vão aos berros clamando por conversão na festa da cristandade.
– Ponha o copo de água sobre o aparelho de TV, ore comigo, meu irmão!
Todos os pedidos jazem serenos nos sapatos. Papai Noel, eu quero. Papai Noel, me traz.

 

 

 

Esta é uma obra de ficção

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