O Quilo golpista

“Cada ideologia tem a inquisição que merece” – Millôr Fernandes

Há certas singularidades, em nós mesmos, que são inexplicáveis. Pois não é que, de um tempo para cá, descobri um restaurante de comida a quilo bolsonarista?

O pior: apesar das características ideológicas do refeitório, pela qualidade do tempero de dona Iná, não consigo parar de me nutrir no pedaço. O menu, de tendência mineira, é uma tentação: galinha caipira, vaca atolada, torresmos, moela ao molho, e outras delícias belo-horizontinas.

O ponto vive repleto de apoiadores do homem. São policiais, velhinhos golpistas, pentecostais, playboys de bairro e outras categorias não-específicas.

Descobri que o quilo possuía viés político quando, em certo repasto, chuchando um pescoço de frango, ouvi a sócia de dona Iná se esgoelar, emocionada:

– Gente, o Mito! O Mito está no bairro, pertinho daqui! Vamos todos lá!!

 Quase me entalei com as cartilagens da penosa. Dali para frente, passei a frequentar o rancho golpista apenas por estar completamente viciado nos condimentos da cozinheira. Entretanto, fiquei esperto, de ouvidos bem abertos, e com a boca fechada.

Por me encontrar no modo Atento, pude detectar conversas peculiares, enquanto derrubava minhas pratadas de gastronomia das Gerais. A garçonete do estabelecimento sempre trocava ideias com um soldado da PM, de pé, ao lado do mesão de quitutes. O assunto era a iminente vitória de Jair no segundo turno.

– Não tem pra ninguém, Consuela, vai dar o capitão.

 – Vai, sargento. Deus quer o Jair no comando.

 – Amém, Senhor!

Os que escutavam ao diálogo, logo responderam, em uníssono, às palavras do militar:

– Amém, Senhor!

Minha impressão era de estar fazendo parte, como figurante, em um filme de folk terror. Daqueles em que, numa localidade longínqua, existe uma seita de propósitos nada misericordiosos. Era o caso de escapar dali, o mais rápido possível, mas, como falei antes, me encontrava adicto às misturas cometidas pela chef do amaldiçoado quilo.

Fui ficando e, principalmente, comendo. Na derrota do 22, encontrei os fregueses em frangalhos – sem trocadilhos com o frango ao molho pardo das terças. Só uma semana após o Waterloo, o sargento voltou a entabular diálogos com Consuela.

– Não deu no voto, mas ele só sai do palácio quando Deus quiser.

– Sim, é Deus no comando.

 – E eu tenho pra mim, Consuela, que o Messias ainda vai ser presidente em 2026.

 – Amém, Senhor!

Os clientes responderam à súplica em coro. Quando o eco das vozes baixou, se ergueu uma idosa da mesa 12. Mostrou uma barata em seu prato e disse:

– Mas que categoria de bodega é esta? Barata no feijão rico? Tenham a santa paciência!

Houve uma disparada ao caixa, com todos largando as comedorias como estavam, e pagando as contas. Dona Iná, abraçada à sócia, soluçava. No mesmo dia, a prefeitura mandou o controle de zoonoses selar o lugar por tempo indeterminado.

Na reabertura, após a longa desinfecção, Consuela revelou ao sargento:

– Sabe da maior? Aquela mulher era infiltrada dos comunistas no Quilo. E a cascuda era de plástico. Pode?

– Hoje é tudo fake news, né?

– Até barata é falsa.

 – Mas 2026 está aí.

 – Amém, Senhor!

 As outras três pessoas, pelas mesas, assentiram, unanimemente. Menos eu. E não só porque a boca estava atulhada de angu.

(Publicado no Estadão)

Sobre Carlos Castelo 49 Artigos
Jornalista, poeta, humorista profissional diplomado. Um dos criadores do grupo musical Língua de Trapo.

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