Elogio da ignorância

“A ignorância é audaz; a sabedoria, reservada” – Tucídedes.

Digam de mim o que quiserem, sou eu, no entanto, somente eu, por minhas estupidezes tantas, que possuo maior influência sobre os homens. Ainda mais nos dias de hoje.

Como nunca se viu na História, sou eu agora quem comanda as ações terrenas. Da arte ao entretenimento, da economia à religião, da ciência às comunicações. Sem falar na política, pois nesse segmento é onde revelo, como Ignorância-mór que sou, minhas mais toscas características.

Os livros de História sempre optaram por lançar luzes aos feitos da inteligência dos homens. Contudo, se pararmos alguns momentos para refletir, notaremos que o Ignorantismo supera o Iluminismo.

Peguemos, a esmo, determinados fatos e personalidades. As guerras, por exemplo, ícones da minha presença no mundo, já existiam entre os neandertais.

O racismo acompanha os entes desde que o mundo é mundo. Escravidão, trabalho infantil, tirania, violência contra a mulher, corrupção, assassinato, hipocrisia: do que você se recorda mais, de tais tópicos ou da invenção da roda, da penicilina, da ida do Homem à Lua? (Viagem essa, aliás, bastante discutível. Para mim, ela teve alguma ascendência de minha parte. Afinal, não foi incultura soviéticos e norte-americanos tirarem recursos da boca de seus povos para brincarem de naves espaciais?).

E, em relação a estes “líderes”: Napoleão, Stálin, Mussolini, Hitler, Médici, Orbán, Putin, Bolsonaro? Seriam estadistas ilustrados, civilizados, ou meros apedeutas com enorme concentração de poder nas mãos?

Percebem? Eu tenho muito mais atuação na Terra. Sem a Ignorância, não haveria solução de continuidade. E o melhor é que, diferente da sapiência, estou sempre evoluindo. Querem uma amostra bem atual? As redes sociais. Que criação, modéstia à parte, mais incrivelmente ignorante. Os geniozinhos nerds inventaram a internet, o celular, o Wi-Fi, eu vim e propus o Facebook, o Telegram, o Youtube, o Instagram. Xeque-mate nos metidos a sábios.

Como era de se esperar, carradas de seguidores meus, logo tomaram conta do inédito universo virtual. Já dizia aquela famosa frase: a unanimidade é burra. Eles já saíram espalhando inverdades, ódio, mau gosto e preconceitos pelos sites e microblogs. A glória!

Agora, sentada em meu trono, observo, com grande felicidade, o planeta intoxicado pelos meus conceitos.

Quem diria que o século XXI seria tão século XI? Que regimes totalitários, varridos de inúmeras nações num passado tão remoto, voltariam a dar as cartas? Que acreditariam que a Terra é plana? Que chefes de Estado se voltariam contra a imunização durante pandemias?

Pouquíssimos botariam suas fichas numa hipótese ignara dessas. Mas uma das principais marcas da Ignorância é a teimosia. Mesmo vergastada, durante uma eternidade, por cérebros evoluídos, nunca deixei de vislumbrar uma volta por cima. E com grande pujança.

Com essa massa serpenteante me abraçando mundo afora, logo poderei gritar, a plenos pulmões, o meu slogan: “Trevas acima de tudo, Ignorância acima de todos”.

(Publicado no Estadão) 

Sobre Carlos Castelo 49 Artigos
Jornalista, poeta, humorista profissional diplomado. Um dos criadores do grupo musical Língua de Trapo.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*